Um dia normal, numa livraria comum... A livraria que visito
quase toda semana, sempre que posso, nem que seja só para olhar quais os novos
títulos, que provavelmente irei demorar a comprar, por causa dos vários outros
livros que já tenho em casa, e ainda não consegui tempo para ler. Este
é o carma de um amante de livros: ter vários deles para ler, e tão pouco tempo
livre... Outra coisa que costumamos fazer é isso de estabelecer uma regra mental, uma proibição de comprar livros até que os que estão em nossas
prateleiras sejam lidos.
“Você não vai mais comprar nenhum livro até que já tenha
lido os outros.”, costumo dizer para mim mesma, em alguns dos meus vários diálogos
mentais. Mas algo que nunca passou por minha cabeça foi: mas e quem não tem
tanto dinheiro assim para comprar livros, e mesmo assim ama ler? Aliás, não
é algo que nunca tenha passado por minha cabeça, mas é algo em que não costumo
pensar muito.
Pois bem. Deixando meus pequenos devaneios de lado, volto à
minha livraria comum. Estou passeando por entre os livros, vendo quais edições
irei adquirir no futuro, ou irei ganhar de presente de aniversário dos amigos,
quando uma cena chama a minha atenção: um menino de uns 13 ou 14 anos segurando
uma revista em quadrinhos, perguntando ao vendedor quanto custava aquela edição.
Ele era visivelmente humilde, usava chinelos bem gastos e roupas que eram grandes
demais para ele. Além disso, carregava consigo dois sacos plásticos, contendo Deus lá sabe o quê. Segurava os sacos e a revista em quadrinhos.
Então, uma senhora loira, muito bem vestida e bonita, e aparentando
ter muito menos idade do que provavelmente tinha, uma “coroa enxuta”, popularmente
falando, pede licença e pergunta a respeito de um livro qualquer, que estava em
falta. É aí que a história fica interessante: ela começa a conversar com o
menino usando um tom amável... Algo que não pude ouvir. Porém, tratei
de me aproximar, por pura curiosidade, para ver o desenrolar dos fatos.
“A curiosidade matou o gato”, não é? Talvez ele não tenha
sido discreto o suficiente... Encontrei esconderijo por trás de uma mesa
expondo histórias em quadrinhos, de onde eu podia ver o que aconteceria a
seguir sem chamar muita atenção.
“Para a senhora”, o garoto diz, erguendo um pacotinho de
jujubas.
“Obrigada”, a senhora ri educadamente, “mas não como doces.”
“Sem problema, você pode dar a seu marido.”, o garoto disse,
ainda com o pacotinho entre os dois. “Eu vendo essas jujubas, e essa foi a que
sobrou...”
A mulher pegou não só o pacotinho de jujubas, mas também retirou gentilmente a
revista em quadrinhos das mãos do garoto, e disse:
“Posso te dar uma coisa?”, vendo que o garoto ficara sem
jeito, ela repetiu, com maior ênfase: “Posso te dar uma coisa? Eu quero te dar
essa revista em quadrinhos.”, os olhos do menino brilhavam de felicidade. “Você
gosta de ler?”, ela perguntou, mas não obteve resposta alguma, além de um aceno
positivo de cabeça.
“Você gosta mesmo
de ler?”, ela quis confirmar o que ela já tinha certeza. Mais uma vez, o garoto
assentiu. “Então me deixe te dar isso de presente.”, ela pediu, mas usando um
tom autoritário. Um "Não aceitarei recusas" estava presente nas entrelinhas desta autoridade amável.
Me afastei, e segui com meu caminho por entre as histórias
de Stephen King e Alexandre Dumas, na sessão de “Literatura estrangeira”.
Ora, o garoto não iria recusar... Eu não recusaria...! Talvez ele estivesse vendendo o pacotinho de
jujubas justamente para comprar a fatídica história em quadrinhos. Ou, talvez,
tenha passado um bom tempo juntando dinheiro para comprá-la, quem sabe? Só ele
sabe. Um preço que, para muitos parece pequeno, coisa ínfima, que gastamos com
um ingresso no cinema, ou até menos... Mas que, para aquele garoto em questão,
custava o preço de muito esforço e oferecia o mundo... Era com o preço daquela
HQ, que ele entraria num mundo novo, um mundo cuja porta é aberta assim que
abrimos o livro. Um mundo desprezado por muitos... O mundo das palavras.
Aquela cena me deu esperança... Esperança de que todas as
pessoas que não tenham condições de comprar livros com tanta facilidade possam
encontrar pessoas assim. Pessoas que valorizam não só a leitura que elas
próprias fazem, mas também, a leitura que outras pessoas podem fazer, e as
experiências que as pessoas vão ter por meio da leitura, pessoas que podem proporcionar a outras o prazer da leitura. Não importa se era uma
HQ ou um livro de 600 páginas, o que importa é o interesse em ler, e o que
aquele garoto estava disposto a sacrificar para conseguir fazê-lo. Foi isso o que me comoveu e me deu esperança. Esperança e
gratidão por ter presenciado uma cena dessas. Esperança de fazer isso por
alguém um dia.
De certo modo, foi como ver uma cena de “A menina que roubava livros” na
vida real. E me senti orgulhosa e feliz por isso. E, a partir de agora, sempre
que pensar num exemplo de generosidade, é na senhora e no garoto em quem pensarei.
Nas duas pessoas cujos nomes não sei até agora, nem me esforcei para descobrir, os dois que me ensinaram uma lição, a lição de abrir mais o
coração para a generosidade. Porque a mente precisa de livros e histórias para
manter-se viva, assim como o corpo precisa de oxigênio.
Quando estava saindo da livraria, dei uma rápida olhadela
para o caixa, e lá estavam a senhora, o marido e o garoto, conversando sobre
algo que eu já não podia mais ouvir. Em seu rosto, ela mantinha um sorriso
terno, algo parecido com orgulho por encontrar alguém que ame tanto a leitura
que estava disposto a sacrificar o pouco dinheiro que ganhara com muito suor,
só para poder ler. E o garoto? Ah, o garoto tinha um sorriso radiante nos lábios, não sei se por felicidade de poder guardar seu dinheiro para outra coisa, talvez ajudar sua família, ou só pela felicidade pura que nos atinge quando finalmente conseguimos algo que desejamos muito, ou pelas portas que irão ser abertas para ele quando ele sentar para ler a história. Na verdade, acredito que seja uma mistura de todos esses fatores.
Nunca a felicidade de alguém havia me deixado tão feliz como a daquele garoto.
Deixei a livraria com os olhos levemente marejados, um
sorriso no rosto, um pouco mais de fé na generosidade humana, e o coração
aquecido pela cena que tanto me tocara.