domingo, 30 de março de 2014

Mas, afinal, quem sou eu?

Sou uma folha em branco,
Meio amassada.
Sou uma folha seca do outono.
Sou um poço sem fim.
Sou o infinito.
Sou tudo.
Mas também sou o nada.
Sou o amanhã, sou o hoje.
Sou o tempo determinado,
24 horas,
48 meses,
Ou uma vida inteira.
Sou um pedaço de alguma coisa, minúsculo vagueando pelo tempo e espaço.

Sou uma antiguidade,
Uma coisa velha... Sou maturidade.
Mas sou uma coisa nova.
E sou as brincadeiras inocentes de duas crianças.
Sou uma obra de arte.
Sou a música que ninguém ouve,
A poesia que ninguém mais dá valor.
Sou aquele filme antigo, o clássico,

Sou um hippie que viaja pelo mundo num trailer,
E também sou uma herdeira milionária, que mora numa mansão.
Sou uma viagem para Londres.
Ou Dubai.
Berlin, talvez...
Sou um avião com destino programado,
Ou sou uma pena, guiada pelo vento.

Sou a noite.
Ou o dia.
Sou o calor,
Ou sou o frio, depende do meu humor.
Sou um extremo, ou outro.
Nunca um meio termo.
Talvez um pouco de indecisão, quem sabe?

Sou a marca de batom vermelho deixada numa taça de vinho.
Um telefone escrito num guardanapo,
Esquecido num bar qualquer.
Sou uma moeda que caiu do bolso de alguém,
Uma nota rasgada de um real, colada com fita adesiva.
Sou uma colcha de retalhos,
Mas sou uniforme.


Sou um modelo único.
Uma composição de carbono e sentimentos.
Mas que às vezes esquece que sentimentos existem.
Uma coisa estranha.
Mas ao mesmo tempo normal.
Sou a sanidade.
Sou um vício em jogos de azar,
Ou a leveza do desapego.
Mas sou a insanidade dos ciúmes.
Sou a intensidade dos amores impossíveis,
A fúria de um tsunami,
Tão imprevisível quanto um vulcão ativo...
Sou tulipas amarelas,
Ou sou crisântemos.

Estou meio perdida, meio esquecida...
Mas meio consciente de onde estou,
Esperando descobrir para onde vou.
Meio arrogante, mas deveras humilde.
Sou uma xícara de chá no final da noite,
Os segredos revelados na madrugada.
A tatuagem com significados escondidos.
Sou um livro aberto, mas meio fechado.
Uma edição limitada,
Feita sob medida para ninguém, por ninguém.
Um robô da sociedade, talvez...
Um androide.
E sou um androide sem par.


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domingo, 16 de março de 2014

Uma história de suspense.

Veneza, março de 2000.
Duas horas da madrugada.

Chuva forte, muitos raios e trovoadas eram o clima daquela quinta-feira. Ninguém na rua, além das gotas de chuva caindo ruidosamente no asfalto, e das árvores cujas folhas foram depenadas pelo frio do inverno que estava por acabar. Um cenário não muito favorável para a chegada de uma família a um hotel.

O hotel, mais parecia uma fortaleza, fechado desde a porta da frente até o portão da garagem.
“Que tipo de hotel fica fechado, mesmo que seja a essa hora?”, pensou a filha mais velha.
Pararam o carro na entrada da garagem, e o pai desceu para procurar por uma campainha, um zelador, alguém que pudesse abrir a porta.

De dentro do carro, a filha observava o pai na chuva, sem conseguir evitar pensar em Norman Bates, e na famosa cena do banheiro de Alfred Hitchcock.
“Sinistro.”, a filha mais nova sussurrou.
A filha mais velha ficou calada, para não ouvir comentários do tipo “Você está assistindo filmes demais.”, coisa que ela ouvia com freqüência. Porém, “Psicose” não foi o único filme que lhe veio à mente... Quantos filmes nos quais os donos dos hotéis matam seus hóspedes ela já assistiu? A conta já foi perdida há muito.
Quando encontrou uma campainha, o pai, ao tocá-la, levou um choque, o que o levou a dar um salto para trás, meio por um susto, meio pelo forte choque.
A mãe buzinou, para sugerir que fossem para outro hotel, um Holiday Inn do outro lado da rua, com aspecto menos estranho, e com portas abertas a qualquer hora, mesmo que isso significasse perder a reserva e ter de pagar uma multa, mas o pai fez sinal pedindo para que esperassem mais um pouco, ao ver que uma luz havia sido acesa dentro do hotel.

Alguém abriu uma cortina de dentro da casa, balbuciou alguma coisa não entendida em italiano, fechou a cortina rapidamente e saiu para saber do que se tratava.
Uma senhora com traços germânicos, de uma beleza andrógina, com cabelos bagunçados foi atendê-los.
Do carro, a mãe e as duas filhas só viram uma sombra descabelada por uma noite de sono interrompida por quatro estrangeiros.
“Qual a probabilidade de ela ser uma serial killer?”, a filha mais velha não conseguiu controlar a língua, esperando que a senhora os recebesse com um machado ou uma motosserra em mãos.

A casa era centenária, uma coisa antiga, cheia de histórias anciãs, mas que era constantemente reformada para o maior conforto possível dos hóspedes. Trata-se de um hotel familiar, a senhora que mostrou-se simpática e prestativa era a dona. Como já era tarde, ela disse que fariam o check in  no hotel pela manhã, que a família dormisse bem e que não se preocupassem com mais nada.
“Das duas, uma... Ou ela é uma pessoa muito ingênua e confia demais nas pessoas, ou ela é uma serial killer prestes a nos matar.”, a filha mais velha sussurrou para a mãe enquanto as duas subiam até o quarto, “Que tipo de pessoa acorda às duas horas da manhã e é toda sorridente e simpática? Só um serial killer prestes a matar!”.
A mãe a repreendeu com o olhar, mas a filha se defendeu:
“É muito mais fácil matar a gente sem o check-in do hotel... Para esconder os corpos e eliminar as pistas!”
“Você está muito paranóica.”, a mãe disse, abrindo a porta do quarto.

Ao fechar a porta, a filha viu uma grinalda de flores amarelas fúnebre, e um arrepio passou pelo seu corpo. O banheiro do quarto era tão limpo quanto um banheiro de hospital... “Um lugar que já pode ter sido um local de assassinato, de tão limpo e bem cuidado.”, pensou. A noite seria longa.

A filha mais nova não conseguiu dormir, incomodada com a cama, então foi para a cama dos pais. A mãe dormiu assim que deitou, e o pai ficou se mexendo, trocando de posições, tentando dormir. Meio sensitivo, sentiu a presença de mais alguém no quarto, alguém além das três pessoas que estavam ali com ele... Alguém que não o estava deixando dormir. A filha mais velha adormeceu logo, e acordou com a mesma rapidez, com a sensação de estar caindo, mas logo fechou os olhos para voltar a dormir, lembrando de um artigo qualquer que lera a respeito desta sensação de estar caindo, algo sobre isso ser um mecanismo de defesa do corpo, para quando há pouco oxigênio no cérebro.

Quando estava prestes a cair no sono, ouviu uma risada que ecoava no quarto todo, algo meio longe, mas ao mesmo tempo, muito próximo de seu ouvido, e sentiu um puxão no lençol. A garota ficou tão aterrorizada que o grito ficou preso em sua garganta, num nó que por pouco não se transformou num choro. Sem outra saída, ela teria de esperar o amanhecer para poder sair dali. Então, puxou as cobertas e ficou cantando mentalmente as músicas que aprendera na Igreja, até que finalmente adormeceu.

O pai virou para os dois lados, tentou todas as posições possíveis, até deitou no chão, mas não conseguiu dormir. “Por favor, me deixe dormir.”, ele pedia mentalmente para quem pudesse ouvir seus pensamentos. Sua noite foi fracionada, de pequenas sonecas, tão rápidas que ele mal percebia que havia perdido a consciência por alguns minutos.

Pela manhã, foram andar de gôndola pela cidade e à tarde voltaram para pegar suas bagagens e seguir viagem. Durante o dia, o antigo hotel não parecia tão assustador.
Mas, quando saíram de lá, saíram sem saber se estavam realmente vivos, ou se aquilo não passava de um eco de suas almas, que agora vagueavam pelo mundo, fora de seus corpos mutilados, ensanguentados, jogados num quarto cujas paredes estavam manchadas de sangue.