quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Realidade e submissão

Uma sala de cirurgia, de um hospital qualquer, num pedaço de terra esquecido por Deus. Ele usava roupas verdes de médico, aquelas que eles usam quando tem de fazer um procedimento cirúrgico em alguém. À sua frente, na maca, uma pessoa-robô, com o peito aberto, cheio de engrenagens. E, onde ficaria o coração, estava um pequeno espaço vazio, quase imperceptível.

Suas mãos firmes, com luvas ensanguentadas manuseavam uma pinça, que segura um chip. Dr. Victor Frankenstein sentiria inveja de um espécime tão perfeito, o modelo mais avançado de um ser humano robótico; sentava no trono da cadeia evolutiva. Só faltava mais uma coisa: o chip que concederia ao robô suas emoções e uma alma. O toque final de sua humanidade. Poderia ter excluído, aliviado do humano-robô a dureza dos sentimentos, mas se não fosse isso, o que seria de sua humanidade?

“Meu filho, te darei todas as emoções que você puder sentir, e uma alma.”, murmurou, inclinando-se para preencher o espaço vazio no peito de seu robô humano.
Fechou o peito de sua criação, e esperou que ele abrisse os olhos.

A vida o atingiu em cheio, como um soco no estômago. Não foi calmo. O robô puxou todo o ar que podia para dentro de si. Não tinha pulmões, mas o fez... É isso o que os humanos fazem. Seus olhos verdes encaravam seu criador com confusão. Seu pai, por sua vez, o olhava como se aquela fosse a coisa mais linda do mundo, sentia-se orgulhoso... Como um pai vendo o filho nascer. Ou Gepeto vendo Pinóquio criar vida. E seu filho era perfeito.

“Quem sou eu?”, o robô quis saber. “Qual é o meu nome? O que estou fazendo aqui? O que sou eu?”, sua voz de máquina fazia uma pergunta atrás da outra, quase sem parar, quase impossível de se entender.

Parou por uns segundos, e passou a mão por sua pele, descobriu que era humano... Mas sabia em sua programação, em sua natureza, que era outra coisa também. Outra coisa além da simples e pura humanidade. Era um híbrido, com o que se poderia dizer que eram as melhores atribuições de ser humano e de ser um robô. Sabia e sentia que era diferente.

“O que sou eu?”, perguntou de forma mais incisiva, porém um pouco mais calmo.
Seu pai procurou palavras, mas não conseguiu pensar em nada além daquelas que poderiam explicar tudo e nada ao mesmo tempo:
“Você é meu filho.”
“Mas não sou humano como você.”
“Não totalmente... Apenas uma parte de você é humana.”
“Por que eu sou assim?”
“Porque eu te fiz assim.”
“E quem você pensa que é para decidir quem eu vou ser, o que eu sou?”, um onda de fúria e indignação invadiu o robô,  fúria de um filho contra um pai.

Respirava fundo e observava a figura em roupas verdes, deixou que seus olhos analisassem rapidamente as manchas de sangue naquelas roupas... Seu sangue. E não pôde evitar quando pensou em si mesmo como uma aberração... Era diferente demais. E sofria. Pensou em como não poderia ser aceito pelos outros, em como não poderia ter amigos, e ficaria sozinho para sempre, sozinho com uma pessoa que, no momento, ele odiava. Odiava porque se não fosse por aquele homem que o encarava com expressão de uma presa ferida por um leão, ele não seria tão diferente... Foi seu criador que o fez daquele jeito, “Porque eu te fiz assim”, ele tinha dito.  Qual o problema em querer ser parecido com todos, afinal?
“Mas você é mais avançado!”, disse o pai num tom de desculpas e indignação. “Você só tem as qualidades de um humano, por exemplo, você não pode adoecer...”
“Se eu não sou humano, e também não sou um robô... O que eu sou? Eu não sou nenhum dos dois, e também não sei agir como tal.”
“Eu posso te ensinar... Se você fizer como eu te digo, você não vai ter problemas.”
“Ainda assim, não serei humano.”, o filho retrucou. “E também nunca serei um robô por inteiro... Eu sou uma anomalia!”, gritou.

O robô então fechou os olhos, e deixou que todas as emoções passassem por si, como se estivesse num barco, e apenas sua mão tocasse a água cristalina do lago onde estava. Raiva. Amor. Calma. Repulsa. Angústia. Felicidade. Frenesi... Medo. Então começou a sentir algo ruim, como se tivesse algo fervendo dentro de si, prestes a explodir. Estava sentindo demais. Olhou para seu criador e perguntou:
“Pai... Por que estou sentindo tudo queimando dentro de mim?”
“Porque é assim que é ser humano.”
“Como vocês aguentam?”
“Às vezes não aguentamos.”


Então, um último olhar foi lançado pelo robô. Para o nada, um olhar que transmitia nada... Quase calmo. E sua cabeça explodiu. Sua parte robô não agüentou o fardo de ser humano. Os sentimentos o afogaram e mataram.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Girassóis

Era muito claro... Tão claro que causou-lhe aquela cegueira temporária de um milionésimo de segundo, que mais parece uma eternidade, como quando se está em um lugar fechado e escuro, é preciso sair, e um dia ensolarado te faz cobrir os olhos. A luz era tamanha que faziam seus olhos doer. Mas não durou muito, logo se acostumou com a claridade.

Estava andando tranquilamente em seu pijama listrado, num campo onde só se via grama. Por todo lado grama, grama até o infinito. Nada além disso e o céu azul acima de si. A grama fazia cócegas em seus pés descalços.

Andava sem rumo, sem preocupações: não sabia para onde estava indo, nem se lá chegaria... Mas não se importava. Apenas era guiada por seus pés, e pela vontade de sentir o vento bater contra seu rosto. Talvez visse campos de girassóis.

Continuou a andar.

Não sabia o que viria a seguir.

A paisagem foi ficando cada vez mais clara, quase tão branca quanto a neve. Um arrepio percorreu seu corpo, e se abraçou, como que para se proteger. Mas não sentia frio. Na verdade, sentia nada... Nem percebia a estranheza daquele momento.

Ouviu algo.
Virou-se para procurar quem estava lhe fazendo companhia. Ou seguindo... Não importava.
Não viu nada, nem ninguém.

Voltou para seguir seu caminho e encontrou uma árvore.

Na árvore, viu uma criatura de cabelos ruivos, com pequenos cachos, e olhos incrivelmente azuis. Também tinha asas.

Grandes asas douradas, que sangravam, machucadas.

Ela olhou para aquele ser incomum, com o que poderia ser descrito como a mistura de curiosidade e deslumbramento, se seus olhos pudessem transmitir algum sentimento, se seus olhos dissessem algo... Se pudesse sentir.

Sob o olhar da aparição, andou até ficar a poucos metros da árvore, de um lugar onde pudesse analisar a aparição. Decidiu que estava olhando para um anjo. O anjo sentava em um dos galhos da árvore, mais parecia uma escultura de gelo e mármore... Em seus olhos, ela pôde ver lágrimas acumuladas, em seu rosto, viu o rastro das lágrimas. Apesar de não ter expressão facial definida, era óbvio que o anjo estivera chorando.

Chorava e suas asas sangravam.

“Por que estava chorando?”, ela perguntou.
Não obteve resposta, apenas o peso do par de olhos marejados sobre si.

Então sentiu.

Sentiu vontade de ajudar, de saber qual era o problema, de cuidar... Vontade de entender e conhecer mais sobre esta figura incrivelmente linda para a qual olhava. Vontade de deixar sua mão percorrer as asas douradas.
Deu um passo à frente. Se aproximou e viu, que com um movimento quase que imperceptível, seu companheiro se encolheu. Ou seria companheira? “Afinal, anjos tem sexo?”, se perguntou.
Deu outro passo. Pisou num graveto, que quebrou. O barulho daquele pequeno graveto quebrando foi como o de um trovão.

O anjo virou a cabeça para o lado, como um animal que ouve um ruído ameaçador, que ninguém mais consegue ouvir. Ela quis perguntar algo, mas não conseguiu. Abriu a boca, mas a voz não saía. Talvez sua língua estivesse colada ao céu da boca.
“Você precisa ir.”, disse uma voz grave em sua cabeça. Era uma voz que transmitia poder. Ela sabia a quem pertencia, e não era a sua consciência.

Relutou, sentiu-se desamparada. Não queria ir e deixar seu novo amigo lá... Seria amigo ou inimigo, no final das contas?

As lágrimas voltaram a escorrer pelo rosto do anjo.

“Não chore...”, ela tentou parecer acalentadora, confortante.

Então, os passos que haviam parado para conhecer seu novo amigo incomum, foram transformados em longos passos, e depois, numa corrida. Viu a criatura cair da árvore, e correu para ampará-la.

A claridade acabou, estava tudo escuro, novamente. De repente, a claridade estava de volta. Mas dessa vez era diferente. Eram as luzes do metrô. Havia dormido mais uma vez... O mesmo sonho estranho.

Perdeu sua parada. Pela terceira vez naquela semana.

E não viu os campos de girassóis.