domingo, 22 de novembro de 2015

Coisas que a gente sabe mas não fala


“Cara de vilã dos filmes da Disney e alma de artista” seria a melhor definição para Mariana. Sentia “de mais” e demonstrava de menos. Mostrar ao mundo seus sentimentos não era muito o seu forte... Era orgulhosa, teimosa, e até um pouco egoísta. Tinha plena consciência disso, e já estava acostumada com seu jeito de ser. Se amava como era, e como devia ser.

À noite Mariana escrevia ouvindo Cazuza, escrevia sobre seus sentimentos, sobre suas pessoas preferidas e sobre coisas que via. De dia, seus cabelos cacheados realçavam seu olhar de superioridade e seu sorrisinho sarcástico faziam Mariana parecer um muro intransponível. Um santuário imaculado onde ninguém pisara antes. Mariana é forte, mas de coração mole; ela só não permite que as pessoas saibam disso. Todos os dias lê os posts da página berlin-artparasites no facebook, e depois guarda seus sentimentos num cantinho escuro dentro de seu ser. Nas madrugadas frias, se enrola em seu edredom com uma xícara de chá desejando que tivesse alguém para lhe fazer companhia, mas não admitiria isso para ninguém. Às vezes quer um carinho, um afago... Mas o orgulho de Mariana não permitia que ela compartilhasse isso com alguém.  Não iria ceder.

Quem cede, perde.
E quem perde, é fraco.
Admitir fraqueza é inadmissível.
Não iria ceder.

É o orgulho
E a autopreservação.

Ora, e quem pode culpar Mariana por se auto preservar? Quem pode culpar Mariana por viver numa correria de compromissos: trabalha, estuda, faz as tarefas de casa, dedica um tempo para sua vaidade. Sai com as amigas e a família, lê, escreve, tira fotografias, pinta e toca violoncelo em seu tempo livre. Faz ioga e pilates e, ainda, fica de babá dos sobrinhos no fim de semana. Ora, quem pode culpar Mariana por viver sua vida como acha melhor? Às vezes Mariana acha que vai ter uma estafa e, às vezes, tem certeza disso. É tanta correria que mal dá tempo para viver. É tanta correria que mal dá tempo para sentir.

Além da falta de tempo causada pelo cotidiano agitado de Mariana, ainda existia o seu orgulho e a segurança de que todos sabem o que ela sente. Não há para quê demonstrar de forma explícita o que se sente se é algo tão evidente, se todos a seu redor a conhecem tão bem que ela não precisa abrir a boca para falar das coisas que todos sabem mas ninguém fala. Não iria se engasgar com as palavras não ditas, isso não era típico dela, e provavelmente nunca seria. Seus olhos já falavam demais.

Um belo dia, no entanto, como que num conto de fadas, Mariana acordou com uma sensação engraçada: percebeu que era orgulhosa demais para dizer às pessoas que ela ama o quanto elas são importantes na vida dela, o quanto essas pessoas tem o incrível poder de fazer seu dia mais feliz. Essa sensação logo se transformou em necessidade, e Mariana sentiu o impulso sobre humano de dizer a todos o quanto eles são importantes para ela.

Lembrava das palavras uma vez lidas na página dos artparasites, de Christopher Morley: “Se descobríssemos que só temos cinco minutos para dizer tudo o que queremos dizer, todas as cabines telefônicas estariam ocupadas por pessoas ligando para outras pessoas, para balbuciar que as amam.” e, pela primeira vez, decidiu não protelar mais, nem deixar para amanhã o que poderia ser feito hoje.

Ligou para todas as pessoas que amava e disse poucas palavras: “Liguei só para dizer que te amo...  Sim, igual àquela música.”, disse entre risos. “Você é importante para mim e eu te amo... Obrigada por tudo. Senti que eu devia te dizer isso.”, Mariana disse ligação após ligação, um pouco desconfortável por estar tão exposta, tão... Vulnerável. Mas aquele gesto vindo de uma pessoa que fugia de seus sentimentos, que preferia não sentir, mudou o dia de várias pessoas. A felicidade nas vozes delas era perceptível, e a felicidade é como uma doença contagiante, só que boa. Parte de alguém, ricocheteia na parede e atinge todos os que estão por perto.

Talvez este tenha sido o segundo de loucura do qual Mariana precisava para demonstrar que não era um androide, que sua barreira de sentimentos não era intransponível. Foi a chance de Mariana de provar que é de carne e osso como qualquer um, e não uma pedra. Ou seria, sim, uma pedra furada pelo tsunami de sentimentos que insistia em guardar nos lugares obscuros do seu ser? Afinal de contas, é como dizem “Água mole e pedra dura, tanto bate até que fura”, não é mesmo?

A pedra Mariana saiu da sua zona de conforto, e disse para todos que amava essas coisas que todo mundo já sabe, mas não fala, coisas que todo mundo percebe mas não diz.

No dia seguinte, abriu a página dos artparasites, leu sua poesia, e guardou seus sentimentos num canto qualquer dentro de si. Estava curada. Mas esperou, e esperou, e esperou. Esperou pela próxima enchente de sentimentos que a fizesse dizer aquelas coisas que todo mundo sabe, mas ninguém diz em voz alta, por medo, por orgulho, por qualquer motivo que seja.

Um dia a onda de sentimentos que resulta em atitudes sentimentalmente impensadas voltaria. Ah, as coisas que sabemos mas não dizemos sempre voltam para nos atormentar de madrugada. Sempre voltam. Na maioria das vezes, de forma inesperada. Na maioria das vezes, mais fortes. As coisas que não dizemos mas todo mundo sabe às vezes são um tormento e um susto.

Aguarde, Mariana.