“Cara de vilã dos filmes da Disney e alma de
artista” seria a melhor definição para Mariana. Sentia “de mais” e demonstrava de
menos. Mostrar ao mundo seus sentimentos não era muito o seu forte... Era
orgulhosa, teimosa, e até um pouco egoísta. Tinha plena consciência disso, e já
estava acostumada com seu jeito de ser. Se amava como era, e como devia ser.
À noite Mariana escrevia ouvindo Cazuza, escrevia
sobre seus sentimentos, sobre suas pessoas preferidas e sobre coisas que via.
De dia, seus cabelos cacheados realçavam seu olhar de superioridade e seu
sorrisinho sarcástico faziam Mariana parecer um muro intransponível. Um
santuário imaculado onde ninguém pisara antes. Mariana é forte, mas de coração
mole; ela só não permite que as pessoas saibam disso. Todos os dias lê os posts
da página berlin-artparasites no facebook, e depois guarda seus sentimentos num
cantinho escuro dentro de seu ser. Nas madrugadas frias, se enrola em seu
edredom com uma xícara de chá desejando que tivesse alguém para lhe fazer
companhia, mas não admitiria isso para ninguém. Às vezes quer um carinho, um afago... Mas o orgulho de Mariana não permitia que ela compartilhasse isso com alguém. Não iria ceder.
Quem cede,
perde.
E quem perde,
é fraco.
Admitir
fraqueza é inadmissível.
Não iria
ceder.
É o orgulho
E a autopreservação.
Ora, e quem pode culpar Mariana por se auto preservar?
Quem pode culpar Mariana por viver numa correria de compromissos: trabalha,
estuda, faz as tarefas de casa, dedica um tempo para sua vaidade. Sai com as
amigas e a família, lê, escreve, tira fotografias, pinta e toca violoncelo em
seu tempo livre. Faz ioga e pilates e, ainda, fica de babá dos sobrinhos no fim
de semana. Ora, quem pode culpar Mariana por viver sua vida como acha melhor? Às
vezes Mariana acha que vai ter uma estafa e, às vezes, tem certeza disso. É
tanta correria que mal dá tempo para viver. É tanta correria que mal dá tempo
para sentir.
Além da falta de tempo causada pelo cotidiano
agitado de Mariana, ainda existia o seu orgulho e a segurança de que todos
sabem o que ela sente. Não há para quê demonstrar de forma explícita o que se
sente se é algo tão evidente, se todos a seu redor a conhecem tão bem que ela
não precisa abrir a boca para falar das coisas que todos sabem mas ninguém
fala. Não iria se engasgar com as palavras não ditas, isso não era típico dela,
e provavelmente nunca seria. Seus olhos
já falavam demais.
Um belo dia, no entanto, como que num conto de
fadas, Mariana acordou com uma sensação engraçada: percebeu que era orgulhosa
demais para dizer às pessoas que ela ama o quanto elas são importantes na vida
dela, o quanto essas pessoas tem o incrível poder de fazer seu dia mais feliz.
Essa sensação logo se transformou em necessidade, e Mariana sentiu o impulso
sobre humano de dizer a todos o quanto eles são importantes para ela.
Lembrava das palavras uma vez lidas na página dos
artparasites, de Christopher Morley: “Se descobríssemos que só temos cinco
minutos para dizer tudo o que queremos dizer, todas as cabines telefônicas
estariam ocupadas por pessoas ligando para outras pessoas, para balbuciar que
as amam.” e, pela primeira vez, decidiu não protelar mais, nem deixar para
amanhã o que poderia ser feito hoje.
Ligou para todas as pessoas que amava e disse poucas
palavras: “Liguei só para dizer que te amo...
Sim, igual àquela música.”, disse entre risos. “Você é importante para
mim e eu te amo... Obrigada por tudo. Senti que eu devia te dizer isso.”,
Mariana disse ligação após ligação, um pouco desconfortável por estar tão
exposta, tão... Vulnerável. Mas aquele gesto vindo de uma pessoa que fugia de
seus sentimentos, que preferia não sentir, mudou o dia de várias pessoas. A
felicidade nas vozes delas era perceptível, e a felicidade é como uma doença
contagiante, só que boa. Parte de alguém, ricocheteia na parede e atinge todos
os que estão por perto.
Talvez este tenha sido o segundo de loucura do qual
Mariana precisava para demonstrar que não era um androide, que sua barreira de
sentimentos não era intransponível. Foi a chance de Mariana de provar que é de
carne e osso como qualquer um, e não uma pedra. Ou seria, sim, uma pedra furada
pelo tsunami de sentimentos que insistia em guardar nos lugares obscuros do seu
ser? Afinal de contas, é como dizem “Água mole e pedra dura, tanto bate até que
fura”, não é mesmo?
A pedra Mariana saiu da sua zona de conforto, e disse
para todos que amava essas coisas que todo mundo já sabe, mas não fala, coisas
que todo mundo percebe mas não diz.
No dia seguinte, abriu a página dos artparasites,
leu sua poesia, e guardou seus sentimentos num canto qualquer dentro de si. Estava curada. Mas esperou, e esperou,
e esperou. Esperou pela próxima enchente de sentimentos que a fizesse dizer
aquelas coisas que todo mundo sabe, mas ninguém diz em voz alta, por medo, por
orgulho, por qualquer motivo que seja.
Um dia a onda de sentimentos que resulta em atitudes
sentimentalmente impensadas voltaria. Ah, as coisas que sabemos mas não dizemos
sempre voltam para nos atormentar de madrugada. Sempre voltam. Na maioria das
vezes, de forma inesperada. Na maioria das vezes, mais fortes. As coisas que não dizemos mas todo mundo sabe às
vezes são um tormento e um susto.
Aguarde, Mariana.