segunda-feira, 18 de novembro de 2019

À Tragédia

Estou por escrever essa carta há um mês e ainda não sei se devo escrever à Tragédia ou ao Teatro das Cabras. Na verdade, essa carta espera para ser escrita há exatamente um mês, sete dias e algumas horas. Bem preciso, do jeito que peritos gostam. Do jeito que a perita da Tragédia gostaria, né?

Acho que escrevo à Tragédia Mais Insignificante do Mundo, ao Teatro das Cabras e quem mais quiser ler. Se vier, venha na paz. E de coração aberto. Acho que vou começar pelo fim.

O Teatro das Cabras é formado por mulheres. Que coisa linda e forte, não? Que delícia ver outras mulheres parindo suas obras de arte e as colocando no mundo! Chega dá vontade de fazer o mesmo! Chega dá vontade de resistir, de lutar, de eu mesma fazer as minhas criações e deixá-las pelo mundo! Estar ali, aplaudindo um teatro feito por mulheres alimentou aquela fome titânica que carrego por resistir. Por ver outras mulheres resistindo e abrindo seu caminho nessa estrutura patriarcal na qual vivemos… Chega o cansaço vai embora e a faísca se transforma num incêndio. Obrigada, Teatro das Cabras! Tem dias que dá vontade de abandonar tudo e virar artista. O dia em que eu te vi foi um deles.

Ao aplaudir aquela pela, refleti algo importante: precisamos apoiar mais mulheres. Sejam elas artistas, cientistas, professoras, advogadas, escritoras, médicas, QUALQUER PROFISSÃO! Existe muita mulher fazendo um trabalho incrível por aí e a gente nem sabe. Precisamos também apoiar mais quem tá perto da gente. Essa reflexão é quase um apelo, um grito de socorro, UM GRITO DE GUERRA! Precisamos nos desvencilhar de costumes enraizados em nós de não consumir o que é produzido por mulheres. Isso me lembrou um post que vi em algum lugar da internet, sei lá quando, que basicamente dizia que não temos o costume de estudar, ler ou assistir nada que seja feito por mulheres. Reflexão feita, digo logo que o Teatro das Cabras é uma boa forma de quebrar essa construção. Está feito o convite.

E, sim, eu tinha começado pelo fim. Isso foi o que eu refleti enquanto batia palmas para vocês, Teatro das Cabras. E depois também. Quando cheguei em casa, quando conversei com meus amigos sobre o que vocês criaram, quando eu vivi após a morte daquelas cabras. Agora, de volta ao início.

Eu sinceramente não sabia o que esperar, só sabia que ia ser bom. E aí veio o carimbo de cabra. É o ingresso. A pessoa já sente o amor de todas as pessoas que criaram essa peça já na primeira carimbada. Entra, senta em seu lugar, spoilers!

As cabras já estão mortas. Tem uma música tocando, uma música que causa um aperto no peito, a respiração fica mais curta, é uma agonia, é uma escuridão pisando em você, que já tá bem pequenininho… E você já não sabe se elas estão mortas ou não. É uma versão refinada do horror, como se estivessem sendo mortas ali, na sua frente. Talvez estejam mesmo. Mortas as cabras, entra a perita. Um dia comum, um homem matou suas cabras. Ele pode, né? As cabras são dele, afinal. Uma cabra em especial me incomodava: ela estava suspensa por correntes, o que me fez lembrar de Fernanda me dizendo em uma de nossas conversas “Luma, arte às vezes tem que incomodar mesmo”. E incomodava. Mas eram só cabras, não?

O olhar alternava entre a cabra suspensa e a perita. A mente estava focada em entender se as cabras eram realmente cabras. Mas o que seriam se não cabras? Mulheres? Minha mente foi parar em “Os Homens Que Não Amavam As Mulheres”, lido em 2010. À Tragédia Mais Insignificante do Mundo: você me fez viajar no tempo! Minha mente era um jogo de tênis de mesa, juntando minhas vivências com o que a perita refletia em cena. Não dava para não olhar para ela, ao mesmo tempo que não dava para não pensar. Consegui visualizar bem as críticas à masculinidade tóxica intrínseca à nossa sociedade e ao feminicídio. Eu estava convicta de que elas estavam lá, até que toda a convicção me abandonou. E aí voltou. É pra se questionar, mesmo! É pra escutar o que a perita tem a dizer! É pra se deixar levar pela narrativa proposta pela Tragédia.

De repente, fiquei com medo de me tornar uma cabra. Acho que todas as mulheres tem. Todas nós somos cabras em potencial. Somos assassinadas e violadas com tanta frequência que nossas mortes se tornam tragédias insignificantes para o mundo. Apenas mais um dado. Eu gosto de história assim: que esconde mil segredos e reflexões. Eu gosto de histórias que me fazem sentir.

Pronto, aqui está o final do início.
Mas eu nem disse tudo o que eu queria dizer, porque eu gosto é do mistério.




O Teatro das Cabras retorna com "A Tragédia Mais Insignificante do Mundo" nos dias 22 e 23 de Novembro, no Espaço A3 em Natal/RN. O valor do ingresso é de R$ 40,00 (inteira) e 20,00 (meia). Para mais informações, é possível consultar o instagram: @teatrodascabras