A história de hoje começa no dia de ontem. Lua crescente em
Escorpião. É amanhã o grande dia. “Devo ir?”, pergunto ao
oráculo mesmo sabendo que não tenho muita escolha. Já senti o chamado,
agora preciso ir. “Iluminação” foi a minha resposta, uma carta
com energia de Lua Cheia me mandando não perder o encontro com a Lua
Cheia, me convidando a alcançar a consciência plena. Há encontros
dos quais não podemos fugir. E quando a Lua te chama para um
encontro, então… “E se eu for, o que vou encontrar lá?”, quis
saber, afinal essa época do mês sempre me deixa ansiosa. Aos
encantos e força da Lua Cheia, reajo com melindres. Sorrio ao ver
qual carta o oráculo me mostrou “Estou pronta para fazer o que vim
fazer”, é o que diz a carta “Desabrochar”, pela qual nutro um
carinho especial. Gostaria de ter essa palavra para sempre marcada em
minha pele.
E
então estava decidida: não vou fugir da Lua, não vou fugir ao meu
desabrochar, muito menos correr da luz. Apesar da minha relutância
em ir, não consigo lembrar de um encontro sequer que fosse ruim,
afinal, minha necessidade por prestar minhas orações ao Universo,
meus protetores e ancestrais está sempre comigo. Minha necessidade
por honrar meus rituais nunca me abandona. De tempos em tempos
preciso sair da pele de mulher e caminhar neste mundo com outras
vestes. Ainda que eu tenha que sentir o amargo dissabor dos portões
para esse encontro, considero esse um preço pequeno demais a ser
pago diante do que viverei nesse momento. Acendo uma vela roxa, oro,
chamando meus ancestrais e protetores e vou por esse caminho. É Lua
Cheia em Escorpião. Lua de Buda. A promessa é de ser a noite mais
espiritual do meu ano. Intensa, como pequenas frases. Forte.
Misteriosa. A grandeza desse mistério me atrai, me faz sentir como
se eu fosse uma criança descobrindo todos os maiores segredos do
Universo, contados pelo desaguar da cachoeira mais antiga que já
existiu.
Dou
o primeiro passo em meu caminho, a Lua ainda está nascendo, mas sua
luz é tão forte que até parece dia. Ao olhar para o chão, vejo
flores. Muitas flores, das mais variadas cores e espécies.
Girassóis, lírios, rosas vermelhas por toda parte. No chão, no ar,
nos cabelos de meus amigos e minha família que me esperavam para me
lembrar de que não estou só. Vejo seus sorrisos, quero abraçá-los
todos, mas são tantos que não consigo. Alguns, parece que não vejo
há anos. Choro de saudade. Choro, choro, choro até achar que não
tenho mais lágrimas. Mas tenho. “Quero chorar mais um pouquinho”,
digo, como se tivesse voltado aos meus seis anos de idade. Às vezes
eu esqueço de chorar. Sinto de mim emanar todo o amor que posso
carregar comigo, desejo-lhes amor e cura.
Sinto
fome. Não deveria, já que me alimentei antes de vir, mas a fome
está aqui, como se estivesse desde muitas outras vidas antes dessa
de agora. Sigo caminhando e, agora, além da fome, oscilo entre
sentir calor e frio e, também, um leve sono. Bocejo. Ouço o rufar de
tambores não muito longe de mim e encontro antigos familiares, que
cuidam de mim enquanto tiro um cochilo perto do fogo. Sacurna está
perto de mim, conversando com suas cobras amigas enquanto sonho. Abro
os olhos lentamente e, com a visão ainda turva, vejo a madre terra
agachada dançando com sua filha, a menina libertina, em suas costas.
Quero dançar com elas, mas ainda não consigo porque sinto que falta
alguém. Falta a mulher-touro. De repente, uma cobra gigante e
prateada tenta me atacar e me fazer mal, mas não consegue. É
impedida por todos aqueles que me amam, e são muitos. Estou
protegida até quando estou vulnerável. Ainda deitada, observo a
cobra queimar até virar cinzas com certa indiferença. “Ele não é
ruim, só é diferente de você e quis te atacar porque ficou com
medo da sua grandeza.”, eu acredito.
Me
levanto e me sento onde posso ver a Lua, afinal, meu encontro também
era com ela, mas logo sinto minhas asas. Está na hora de voar um
pouco, voar é bom, é gostoso. É livre. Voo por toda aquela floresta à noite e, quando estou
pousando, sinto meu corpo se transmutar no de uma leoa. E corro até
o abismo mais próximo, do qual salto e, mais uma vez me transformo
numa águia! Pulo de pele em pele até me cansar e voltar a ser
mulher, agora sem minhas roupas antigas, usando apenas uma saia longa
roxa e muitos colares verdes. Encostada numa árvore de Jurema, deixo
a energia da Lua me tocar, me permito sentir a vibração de meu
corpo. Sorrio ao sentir aquela força. A música está dentro de mim
como se não houvesse nada mais. Me sinto grande, forte e protegida.
Olho para o canto de meu quarto, e vejo uma mulher de cabelos pretos
longos que já não é uma desconhecida, encostada na porta me
observando. Já a vi tantas outras vezes em tantas outras formas e em
tantos lugares diferentes que vê-la ali é natural, como se eu a
estivesse esperando.
Atrás
de mim, seis familiares meus tocam tambor. Eu gosto de tambores, seu
som faz meu corpo dançar. Levanto, busco meus leques, os acendo e
danço com fogo, até que chega a mulher-touro. Danço com ela, com a
moça que chamo de Madre Terra e sua menina libertina e com Sacurna.
Tudo está em seu perfeito lugar, tudo está acontecendo da forma que
deve ser. Me canso e sento no chão, lembro do rapaz-coruja e sinto
falta de seu abraço. Ah, quanto tempo faz que não o vejo! Abraço a
mim mesma, como se aquele fosse um abraço do próprio e me contento
com o que tenho, mas ainda pensando “Quando eu o vir, vou morar em
seu abraço por um ano inteiro.”
Olho
para a Lua, admiro sua beleza e mais uma vez me transformo em águia
e saio voando. Quando volto, mais uma vez sento no chão e sinto meu
corpo, alongo minha coluna tentando tocar meus pés e, lentamente,
vou voltando para ficar de coluna ereta, sentindo as minhas mãos
tocarem meus tornozelos, meus joelhos, minhas coxas, até descansarem
uma sobre a outra. A música que agora toca fala diretamente ao meu
útero, transformando os movimentos de minha cintura em uma dança
quase erótica em tons de vermelho, preto e amarelo, cor de fogo.
Libertação sexual. A cara do fogo. Abro as pernas e jogo os ombros
pra trás. “Deixo entrar o que tiver que entrar, seja lá se for
bom ou ruim, eu estou preparada. Se for bom, deixará frutos e, se
for ruim, não permanecerá por muito tempo porque nada nem ninguém
que me quer mal consegue me tocar. Estou de coração e ventre
abertos.”, ao passo que vejo todos os animais rastejantes daquela
floresta entrarem dentro de mim. Cobras, ratos, lagartos, escorpiões,
animais de todas as espécies que a muitos causam repulsa. Aceito as
coisas como são. É o presente da Lua de Escorpião. Respiro fundo e
acolho a todos os que me querem em meu ventre. Abro os olhos e não
há mais floresta ali. Não há mais meu quarto. Apenas eu.
Abro
os olhos e me vejo andando em cima dos impulsos elétricos de
sinapses humanas. Talvez as minhas. Em vermelho, amarelo e preto, cor
de fogo. Novamente me sento e sinto de minhas costelas brotarem patas
peludas e em meu rosto nascerem mais seis olhos. Me tornei uma aranha
gigante que tem sonhos de fogo, cujos fios de sua teia caem em cachos
no meu rosto formando mais uma vez uma dança com leques. Isso me faz
gargalhar e a mulher encostada na porta do meu quarto muda de
posição, me observando curiosa. A tecelã da criatividade me avisa
gentilmente que tão importante quanto o resultado, é o caminho.
Paciência, Domingas.
Deito
no chão, olhando para a Lua e canto. Canto como se nunca tivesse
sentido vergonha, canto porque minha alma precisa do cantar e a minha
voz é a mais bonita que eu já ouvi em toda minha vida. Uma flauta
toca, levanto para dançar com as mulheres que me acompanham na vida
atual e assim vou caminhando, mudando de pele, tocando maracás,
sendo mais uma vez água e leoa, até que reencontro minha cama.
Deito ainda dançando com as mãos. Eu adoro minhas mãos. Continuo
cantando. E assim despeço-me de mais um encontro.
Escuta
teus ancestrais que você não chegou aqui sozinha, não.
Nas
noites de Lua Cheia, Domingas se encontra com todas as suas vidas
anteriores.
Ainda
sente fome.