sábado, 9 de maio de 2020

Numa quinta Domingas aparece

ATENÇÃO: Antes de começar a leitura desse texto, sugiro que você clique aqui e dê play para que a experiência possa ser a mais completa possível. Boa leitura!



A história de hoje começa no dia de ontem. Lua crescente em Escorpião. É amanhã o grande dia. “Devo ir?”, pergunto ao oráculo mesmo sabendo que não tenho muita escolha. Já senti o chamado, agora preciso ir. “Iluminação” foi a minha resposta, uma carta com energia de Lua Cheia me mandando não perder o encontro com a Lua Cheia, me convidando a alcançar a consciência plena. Há encontros dos quais não podemos fugir. E quando a Lua te chama para um encontro, então… “E se eu for, o que vou encontrar lá?”, quis saber, afinal essa época do mês sempre me deixa ansiosa. Aos encantos e força da Lua Cheia, reajo com melindres. Sorrio ao ver qual carta o oráculo me mostrou “Estou pronta para fazer o que vim fazer”, é o que diz a carta “Desabrochar”, pela qual nutro um carinho especial. Gostaria de ter essa palavra para sempre marcada em minha pele.


E então estava decidida: não vou fugir da Lua, não vou fugir ao meu desabrochar, muito menos correr da luz. Apesar da minha relutância em ir, não consigo lembrar de um encontro sequer que fosse ruim, afinal, minha necessidade por prestar minhas orações ao Universo, meus protetores e ancestrais está sempre comigo. Minha necessidade por honrar meus rituais nunca me abandona. De tempos em tempos preciso sair da pele de mulher e caminhar neste mundo com outras vestes. Ainda que eu tenha que sentir o amargo dissabor dos portões para esse encontro, considero esse um preço pequeno demais a ser pago diante do que viverei nesse momento. Acendo uma vela roxa, oro, chamando meus ancestrais e protetores e vou por esse caminho. É Lua Cheia em Escorpião. Lua de Buda. A promessa é de ser a noite mais espiritual do meu ano. Intensa, como pequenas frases. Forte. Misteriosa. A grandeza desse mistério me atrai, me faz sentir como se eu fosse uma criança descobrindo todos os maiores segredos do Universo, contados pelo desaguar da cachoeira mais antiga que já existiu.


Dou o primeiro passo em meu caminho, a Lua ainda está nascendo, mas sua luz é tão forte que até parece dia. Ao olhar para o chão, vejo flores. Muitas flores, das mais variadas cores e espécies. Girassóis, lírios, rosas vermelhas por toda parte. No chão, no ar, nos cabelos de meus amigos e minha família que me esperavam para me lembrar de que não estou só. Vejo seus sorrisos, quero abraçá-los todos, mas são tantos que não consigo. Alguns, parece que não vejo há anos. Choro de saudade. Choro, choro, choro até achar que não tenho mais lágrimas. Mas tenho. “Quero chorar mais um pouquinho”, digo, como se tivesse voltado aos meus seis anos de idade. Às vezes eu esqueço de chorar. Sinto de mim emanar todo o amor que posso carregar comigo, desejo-lhes amor e cura.


Sinto fome. Não deveria, já que me alimentei antes de vir, mas a fome está aqui, como se estivesse desde muitas outras vidas antes dessa de agora. Sigo caminhando e, agora, além da fome, oscilo entre sentir calor e frio e, também, um leve sono. Bocejo. Ouço o rufar de tambores não muito longe de mim e encontro antigos familiares, que cuidam de mim enquanto tiro um cochilo perto do fogo. Sacurna está perto de mim, conversando com suas cobras amigas enquanto sonho. Abro os olhos lentamente e, com a visão ainda turva, vejo a madre terra agachada dançando com sua filha, a menina libertina, em suas costas. Quero dançar com elas, mas ainda não consigo porque sinto que falta alguém. Falta a mulher-touro. De repente, uma cobra gigante e prateada tenta me atacar e me fazer mal, mas não consegue. É impedida por todos aqueles que me amam, e são muitos. Estou protegida até quando estou vulnerável. Ainda deitada, observo a cobra queimar até virar cinzas com certa indiferença. “Ele não é ruim, só é diferente de você e quis te atacar porque ficou com medo da sua grandeza.”, eu acredito.

Me levanto e me sento onde posso ver a Lua, afinal, meu encontro também era com ela, mas logo sinto minhas asas. Está na hora de voar um pouco, voar é bom, é gostoso. É livre. Voo por toda aquela floresta à noite e, quando estou pousando, sinto meu corpo se transmutar no de uma leoa. E corro até o abismo mais próximo, do qual salto e, mais uma vez me transformo numa águia! Pulo de pele em pele até me cansar e voltar a ser mulher, agora sem minhas roupas antigas, usando apenas uma saia longa roxa e muitos colares verdes. Encostada numa árvore de Jurema, deixo a energia da Lua me tocar, me permito sentir a vibração de meu corpo. Sorrio ao sentir aquela força. A música está dentro de mim como se não houvesse nada mais. Me sinto grande, forte e protegida. Olho para o canto de meu quarto, e vejo uma mulher de cabelos pretos longos que já não é uma desconhecida, encostada na porta me observando. Já a vi tantas outras vezes em tantas outras formas e em tantos lugares diferentes que vê-la ali é natural, como se eu a estivesse esperando.


Atrás de mim, seis familiares meus tocam tambor. Eu gosto de tambores, seu som faz meu corpo dançar. Levanto, busco meus leques, os acendo e danço com fogo, até que chega a mulher-touro. Danço com ela, com a moça que chamo de Madre Terra e sua menina libertina e com Sacurna. Tudo está em seu perfeito lugar, tudo está acontecendo da forma que deve ser. Me canso e sento no chão, lembro do rapaz-coruja e sinto falta de seu abraço. Ah, quanto tempo faz que não o vejo! Abraço a mim mesma, como se aquele fosse um abraço do próprio e me contento com o que tenho, mas ainda pensando “Quando eu o vir, vou morar em seu abraço por um ano inteiro.”


Olho para a Lua, admiro sua beleza e mais uma vez me transformo em águia e saio voando. Quando volto, mais uma vez sento no chão e sinto meu corpo, alongo minha coluna tentando tocar meus pés e, lentamente, vou voltando para ficar de coluna ereta, sentindo as minhas mãos tocarem meus tornozelos, meus joelhos, minhas coxas, até descansarem uma sobre a outra. A música que agora toca fala diretamente ao meu útero, transformando os movimentos de minha cintura em uma dança quase erótica em tons de vermelho, preto e amarelo, cor de fogo. Libertação sexual. A cara do fogo. Abro as pernas e jogo os ombros pra trás. “Deixo entrar o que tiver que entrar, seja lá se for bom ou ruim, eu estou preparada. Se for bom, deixará frutos e, se for ruim, não permanecerá por muito tempo porque nada nem ninguém que me quer mal consegue me tocar. Estou de coração e ventre abertos.”, ao passo que vejo todos os animais rastejantes daquela floresta entrarem dentro de mim. Cobras, ratos, lagartos, escorpiões, animais de todas as espécies que a muitos causam repulsa. Aceito as coisas como são. É o presente da Lua de Escorpião. Respiro fundo e acolho a todos os que me querem em meu ventre. Abro os olhos e não há mais floresta ali. Não há mais meu quarto. Apenas eu.


Abro os olhos e me vejo andando em cima dos impulsos elétricos de sinapses humanas. Talvez as minhas. Em vermelho, amarelo e preto, cor de fogo. Novamente me sento e sinto de minhas costelas brotarem patas peludas e em meu rosto nascerem mais seis olhos. Me tornei uma aranha gigante que tem sonhos de fogo, cujos fios de sua teia caem em cachos no meu rosto formando mais uma vez uma dança com leques. Isso me faz gargalhar e a mulher encostada na porta do meu quarto muda de posição, me observando curiosa. A tecelã da criatividade me avisa gentilmente que tão importante quanto o resultado, é o caminho. Paciência, Domingas.


Deito no chão, olhando para a Lua e canto. Canto como se nunca tivesse sentido vergonha, canto porque minha alma precisa do cantar e a minha voz é a mais bonita que eu já ouvi em toda minha vida. Uma flauta toca, levanto para dançar com as mulheres que me acompanham na vida atual e assim vou caminhando, mudando de pele, tocando maracás, sendo mais uma vez água e leoa, até que reencontro minha cama. Deito ainda dançando com as mãos. Eu adoro minhas mãos. Continuo cantando. E assim despeço-me de mais um encontro.


Escuta teus ancestrais que você não chegou aqui sozinha, não.
Nas noites de Lua Cheia, Domingas se encontra com todas as suas vidas anteriores.
Ainda sente fome.