sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Carta a Nicanor Parra

 

Querido Parra,


Acabei de ler seu livro e estou aos prantos… Quem não? Existe uma música de uma cantora chamada Letrux com esse título. Acho que você gostaria dela. Acho que Letrux carrega na música a antipoesia que nos é tão cara. Sinto que devia escrever-te mais, porque há mais o que dizer… Há constelações inteiras por dizer! Ao mesmo tempo, as palavras escritas aqui já me parecem suficientes. Não o são. Acho que nunca haverá palavras suficientes a uma antipoeta.


Sim… Foi assim que passei a me chamar desde que descobri a antipoesia. Reclamei esse título para mim desde que ouvi falar na antipoesia e os motivos você descobrirá aqui. Será audácia minha? Se for, bem… Paciência. Sempre fui audaciosa e obstinada, mesmo! Um pouco insolente também. O eruditismo e a linguagem solene da poesia sempre me afastaram do título de poeta. É o pedestal… O maldito pedestal! Agora você me deu um lugar ao qual pertencer, obrigada por isso. Eu nunca senti que queria pertencer, menina moleca ovelha desgarrada que sou! Mas pertencer à antipoesia é bom. Ou é a antipoesia que nos pertence? A arte pertence ao artista ou o artista pertence à arte? Gostaria de lhe perguntar isso porque gosto de te imaginar como um artista que gosta da troca, da partilha. E, se não gostasse, talvez eu pudesse te fazer começar a gostar. Se você me desse a chance, é claro. Não é isso o que nós, antipoetas, artistas, queremos? Uma chance… Já tenho minha opinião nesse assunto, eu acho. Acho que artistas são meros humanos e a arte por si só tem em si toda a força do próprio tempo, afinal, ela estava aqui antes do artista e aqui permanecerá mesmo após a partida desse artista, assim como seu livro, que leio dois anos após a sua morte.


E por falar nisso, ler seus antipoemas diretamente de 2020 parece uma viagem no tempo: em 1954 você já tinha uns 40 anos? Eu, aqui, aos meus 27, encontrei em suas palavras um pouco das minhas, apesar de escrevermos de formas distintas. Me faz querer revolucionar também, sabe? Me afasta a ideia de glamour que transmite a ideia de uma revolução. Revolução em quê, afinal? Nas artes? Na escrita? E quem sou eu para fazê-lo? Ora, uma mera escritora conhecida por ninguém, lida por pouquíssimos (cada um extremamente importante, diga-se de passagem), que escreve há mais de 13 anos mas só saiu do armário enquanto escritora e artista agora? Pergunto: o que torna um artista um artista? Grande reconhecimento? Se assim for, provavelmente nunca serei uma artista. A primeira obra de arte? Se assim for, sou artista desde os cinco anos. Autoafirmação? Se assim for, apenas sou artista há meses. Foi nessa quarentena que resolvi “bater no peito” e me afirmar como tal. Ainda assim, se me considerarmos uma artista que ainda engatinha em sua trajetória, isso apagará todos os anos em que fiz arte escondida do mundo, no silêncio da madrugada, como se este fosse o maior segredo que carrego, não? Bem, deixo a você a resposta para isso. Só não me apareça com textos filosóficos porque não estou com paciência para as filosofias de outros.


De volta à revolução: sei que a desejo com todas as minhas forças. Só não sei o que desejo revolucionar… Ainda. Espero encontrar aliades nessa revolução. Pessoas que amem arte, que não apenas queiram consumir, mas cujo desejo de criar é tão forte… Mas tão forte! Que se não criar…! A cabeça explode! Não consegue dormir! Que queiram dividir. Esses sonhos malucos de escritor, você sabe…


Acho que a antipoesia sempre correu em minhas veias, mesmo sem que eu soubesse. Já devo ter escrito algo parecido com isso em alguma outra poesia perdida por aí. Ler suas palavras foi como voltar para casa. E que viagem! Estou não botando sangue pela boca e narinas mas, sim, estou com sangue nos olhos! Quero criar! Preciso criar!


Me encontrar com você no seu post mortem causou um embate, uma luta comigo mesma! Primeiro, quis me comparar à sua escrita, mas, como poderia fazê-lo? 38 anos antes de eu nascer você já escrevia! E, novamente, como poderia fazê-lo se vivemos em épocas tão diferentes, se somos pessoas diferentes, de idades e vivência totalmente diferentes! Lembrei disso no exato momento em que estava duvidando de meu valor como artista. Depois disso, senti que se enraizava em mim a seguinte crença: a antipoesia é imprevisível. Que essa característica incalculável (e, aqui, paro para rir ao usar uma palavra que remete à matemática de um antipoeta matemático) torne a antipoesia diversa. Que ela não se torne um grande templo com arquitetura impecável e que, na verdade, seja tão livre quanto um pássaro. Esse é meu mais novo sonho. Depois dessa cura, a leitura foi só sentir, como um constante arrepio. Incrível. Sonho, agora, também chegar aos 103 anos. Quem sabe eu não publique um “Só para maiores de cem anos” também?


Que um dia possamos nos encontrar,

Com carinho.