sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Trânsito

Nota da escritora: para uma leitura mais sensorial, que tal ler enquanto ouve essa música aqui? Planet Caravan - Black Sabbath foi a música que inspirou a escrita desse texto. Boa leitura!


Os tambores levam a atenção ao céu.

Estamos na mata, na beira do rio.

No alto do céu brilha uma Lua Cheia.

Me sinto em casa.

Subitamente parece que da comunhão da natureza ganhei o presente de falar todas as palavras que existem em todas as línguas 

A capacidade de falar, entender e escrever todas elas,

Ainda que com erros propositais, só para me divertir um pouco.


Me aconchego no abraço do fogo com o vento da noite.

Não dá para não sentir o fogo, mesmo no frio e sinto um carinho das chamas cuspidas ao céu,

Como uma oração a todas as divindades que já existiram e ainda irão existir

Agradecendo e pedindo por proteção.

“Que nossos caminhos sejam sempre iluminados,

Que nossos ancestrais e guardiões sempre nos protejam.”


O fogo quase toca os céus, cuspido por aquele menino pirofagista,

Que gosta de usar uma saia de palha seca,

Para parecer um filho de orixá.

Uma vez me disseram que ele iria esquecer disso.

Ou desaprender, não me recordo bem de qual foi a palavra usada.

Achei que estava tudo bem, quando a gente cresce, a gente esquece de ser criança mesmo.

A gente desaprende.

No crescimento a gente desaprende e vira adulto pra reaprender o que toda criança já sabe.

É a vida.

E foi da vida que havia recebido aquela memória, a de cuspir fogo.

Foi da vida anterior que herdou esse saber, não era presente dessa.

Precisei acreditar em vidas passadas depois disso.

Vi esse momento acontecer já com a sensação de que seria uma boa memória.


Senti um arrepio, como se algum ancestral me tocasse o ombro e mais uma vez olhei pra Lua,

Respirei fundo.

Dentro de mim eu sabia que em algum lugar da mata,

Sob aquele mesmo céu e noite a Caipora e o Boitatá dançavam,

E como se sua dança me contasse todas as histórias de seus povos

Foram esses tambores e o som da noite na mata

Que me lembraram uma antiga história cuja moral dizia que até certa idade,

A criança ainda não sabe onde e quando está, 

Por isso vive na encruzilhada entre vidas, 

Lembrando o que havia lá e tentando se situar no que há do lado de cá,

Até o momento em que sente em suas entranhas a dor e a beleza do tempo e espaço que ocupa com o rotacionar da Terra.

Vai esquecendo, 


esquecendo,

esquecendo…

De que?

Talvez seja coisa demais para lembrar.

Ou talvez você lembre… Quando o momento certo chegar,

Quando os tambores rufarem, quando a Lua estiver na posição correta…

Quando aquele menino cuspir fogo novamente.

Quem sabe?