segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Iago

“O que somos?” foi a pergunta lançada naquele primeiro encontro peculiar. A resposta para a pergunta, é claro, pode ser de uma variedade imensa. “Somos o que somos”, em referência àquele filme lançado em 2013 seria uma delas. A criação de um ser divino, cuja existência é questionada por muitos e venerada por todos? A junção de todas as experiências de alguém? Ou o que se ama? Ou será que somos nada? Por outro lado, poderíamos ser tudo, não? Outra resposta subjetiva, a qual talvez não respondesse à pergunta seria a famosa frase de Hamlet “Ser ou não ser... Eis a questão.”. Shakespeare poderia ser invocado mais uma vez: “Nós somos feitos do mesmo tecido de que são feitos os sonhos.”.

(memória)
(somos feitos de poeira estelar)
(somos estrelas, afinal?)

A discussão faria uma mesa de bar formada por filósofos, psicólogos e poetas entrarem em guerra.

(SOMOS A METAFÍSICA DO UNIVERSO)

“Somos o que comemos.”, ele riu, dando uma garfada num pedaço de bacon.
(é um porco?)
(silêncio)

De certo modo, talvez ele tivesse razão. Mas talvez uma pessoa seja muito mais do que parece ser, muito mais do que acredita ser. Guarda, dentro de si tantas coisas, tantos sentimentos, sonhos, aspirações, amores e desamores, músicas, livros, filmes, memórias, crenças e descrenças, palavras não ditas, traumas e explosões de felicidade. Cosmos.

Nada de comum havia naquele primeiro encontro: era uma sexta-feira, 13 de outubro. Foram a um restaurante cuja decoração era temática do dia das bruxas. O cardápio havia sido modificado, para pratos com títulos como: “Marinheiro afogado”, ou seja, camarões ao thermidor; “Bruxa queimada”, um prato de frango empanado; o filé ao molho madeira, no momento, era conhecido como “KKK”. De preferência, bem passado. “Açougueiro Decapitado” era o sorvete de morango com calda especial. Outra sobremesa se chamava “Os pássaros”, e outra, “Frenesi”. “A vingança dos porcos” poderia ser encontrada no menu de entradas. “O Exorcista” seria um dos digestivos. Na mesa, uma pequena abóbora iluminada, entre dois candelabros com velas acesas, ligadas por teias de aranha.

A loja de decoração ao lado do restaurante, no entanto, não reconhecia a existência do dia das bruxas: em pleno outubro já começara a expor as árvores de Natal. “Como em ‘O Estranho Mundo de Jack’.”, ela pensou e riu consigo mesma. Dentro do restaurante, o pianista tocava a trilha sonora de “O Bebê de Rosemary”. Ela tinha um forte sentimento de que, em algum momento, a música da icônica cena do banheiro de “Psicose” começaria a ser tocada. O garçom assobiava da mesma forma que se ouve assobiar em “A Morte tem Cara de Anjo”. “Tubarão” e “O Iluminado” certamente estariam no repertório.

Ela parecia de outro mundo: olhos azuis claros, maçãs do rosto bem altas, o queixo não muito protuberante. Provavelmente não era considerada bonita por muitos. Mas algo nela despertou o interesse dele. Talvez fosse seu jeito que causava nele a impressão de que ela parecia ver tudo acontecer sem se importar muito. Às vezes falava e dava a impressão de que estava em outro lugar, não ali. Todos os seus traços mais marcantes poderiam ser resumidos na palavra “estranha”. O que é estranho, no entanto, nem sempre é ruim. Esse é um bom lembrete. Em compensação, ele era normal demais, pacato demais. Ela compensava a normalidade dele. Era o que ele acreditava.

“Será que todas as pessoas são assim?”, ela devaneou depois de alguns momentos em silêncio.
“Assim como?”
“Maiores por dentro.”
“Todos nós temos um Universo inteiro dentro de nós.”
“Eu quero ver.”, ela deu um sorriso daqueles que permitem que se veja todos os dentes “Cada um desses Universos.”
“Você não pode, estão escondidos, sabe...”
“Onde?”
“Dentro.”
“Lá dentro?”
“Isso, bem fundo.”
“Mas e se eu arrancar sua pele?”, ela questionou, num tom mais baixo que o normal.
“O que você disse?”
“Eu quis dizer: se eu arrancar sua pele, será que eu posso ver o Universo dentro e você?”

Sorriram e voltaram a comer.
Ele, ansiava por descobrir mais a respeito de uma moça com um Universo tão peculiar dentro de si.
Ela, só pensava naquela pele bronzeada sendo arrancada.

Silêncio.









quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Textos escritos às três da manhã

Nem lembrava direito como foi a primeira vez que chegara ali, dois anos atrás. Lembrava que as almofadas da sala de espera eram verdes, e assim permaneceram até hoje. Lembrava, também, da reação de seus pais ao descobrirem que estava buscando ajuda profissional: ao contrário do que esperava, ficaram felizes. Acharam que ela estava indo para aprender a obedecê-los, e curar seu “espírito rebelde”. Pelo contrário, sua intenção era se livrar das amarras das idealizações. Pretendia respirar um pouco diante do sufoco causado pela repressão de não poder ser quem é.

O problema de Maitê nunca foi existencial: sabia muito bem quem era desde sempre. O que não sabia, no entanto, era como lidar com a repressão de todos a seu redor. Todos esperavam que Maitê agisse de uma certa forma, que seguisse um certo padrão. Deveria parecer uma Barbie sempre que fosse sair de casa, muito bem vestida e maquiada. Cabelos impecáveis e cílios postiços cuidadosamente colocados. Deveria ir para a academia, ficar com as pernas grossas, barriga chapada e braços bonitos. Nunca seria bonita se não fosse magra. A pele, deveria estar sempre lisa. Deveria parecer inteligente, claro, porque nem só de aparência vive a sociedade, mas não muito inteligente para “não assustar os pretendentes”. Não podia defender suas opiniões, porque “homem não gosta de mulher de personalidade forte”.

Deveria frequentar os lugares da moda, ouvir as músicas da moda, e usar o vestido de seda da moda. Seus amigos, certamente, devem ser aqueles que mais causam estardalhaço e chamam mais atenção ao chegar nas festas e eventos sociais da cidade, pois eram os “populares”. Para completar, tem que ser muito bem resolvida: aos 25 anos, agora formada numa faculdade que não era sua primeira opção, deveria saber toda e qualquer coisa que iria acontecer em sua vida desde hoje, até o dia da sua aposentadoria. Aos 25 anos, Maitê deveria fazer mil e uma coisas, porque era o que todo mundo esperava dela.

Chegou na sala do psicólogo e, em meio às suas angústias, foi diagnosticada com ansiedade. Ansiedade. O mal do século. Todo mundo tem. Alguns teorizam a relação entre a ansiedade e a tecnologia. Talvez devessem falar em intolerância também. O psicólogo, no entanto, foi muito categórico: entendia que Maitê sabia quem era, o que ela precisava mudar era a angústia de se importar com o que as pessoas falavam a seu respeito. Ignorar e seguir em frente. Ora, como pode ela, ser feliz se consideram quem ela é errado? Maitê se acha maravilhosa, e acredita que merece do mundo uma maior compreensão. Acha que, apesar de saber que nunca conseguiria agradar a todos, as pessoas deveriam reconhecer quão maravilhosa ela é.

Maitê frequenta o cinema, mesmo sozinha, escuta músicas e bandas antigas – “Música boa não tem idade.”, costuma dizer – e gosta de vestidos listrados. Não tem corpo escultural e gosta de tatuagens. Odeia saltos altos e só usa maquiagem em ocasiões especiais. Por vezes, já saiu de casa de pijama, com um coque mal feito na cabeça. Seus amigos gostam de sair de casa para conversar sobre inclusão social e feminismo, assistir filmes e comer. Por falar nisso, Maitê cozinha muito bem, tem um talento especial para a cozinha. Outro talento dela é fazer maquiagens de halloween e se divertir fazendo isso. Também nunca se importou com a imagem que um “pretendente” poderia ter dela. Se fosse para gostar dela, que gostasse dela com sua inteligência não tão excepcional assim e suas opiniões fortes. Encontrariam um meio-termo.

Mas o que a incomodava mais do que qualquer outra coisa era quando a enchiam de perguntas a respeito de sua vida profissional. Afinal de contas, por que isso interessa tanto às pessoas, se o trabalho de Maitê seria apenas uma parcela do seu dia, o que ela faz para ganhar dinheiro, e não um fator tão determinante na sua personalidade quanto seria seu livro preferido? Maitê não era seu trabalho, que ela ainda nem havia escolhido. Maitê era muito mais do que viam nela.

Maitê é uma tela em branco, cujas cores vão surgindo com o tempo, aos poucos. Devagar. Sutilmente.

No entanto, as pessoas esperam ver essa tela preenchida tão rápido quanto num piscar de olhos. Não satisfeitas com a necessidade de uma rápida pintura, as pessoas criaram uma imagem de Maitê. Cada um espera uma coisa, cada um acredita que ela deveria seguir por um caminho, cada um acha que ela “tem que”, “tem que”, “tem que”. “Você tem que...”, suspirava exausta e farta de pessoas querendo mostrar-lhe o caminho “mais certo” a cada oportunidade. Todos somos obras de arte.

E Maitê era vista como uma obra de Romero Britto.
Na verdade, todos são vistos como obras de Romero Britto.

Mas Maitê nunca quis ser algo tão popular, de formas tão rígidas que devem caber num padrão específico. Maitê nunca quis ser igual a todo mundo. Preferia ser uma Van Gogh, uma Monet ou, até mesmo, o quadro desconhecido com suaves cores em aquarela. Para início de conversa, Maitê nunca gostou da obra de Romero Britto, e sempre se perguntou o porquê de pessoas pagarem tanto dinheiro por uma obra dele. A resposta, claro, é: porque é moda. Qualquer um pode ser um Romero Britto, sem muito esforço. Qualquer um pode criar uma obra de Romero Britto sem muito esforço. É comercial, todo mundo quer, todo mundo tem. Qualquer um pode comprar. Falta profundidade e leveza no traço. Maitê, no entanto, não se importa com quem seja assim, só não quer que esperem dela se transformar nisso. Romero Britto tá na moda. Maitê não quer ser a moda.

Precisava, então, de ajuda para se libertar e não se chatear quando ouvia tantos padrões e tantas respostas às suas perguntas internas. Maitê sabia seu caminho, e sabia quem era, mas precisava aprender a ignorar toda e qualquer pessoa que a desviasse de seu destino. Se é que destino existe... Ela nunca gastou muito tempo pensando sobre o desenrolar dos acontecimentos da sua vida, e da possibilidade de ligação entre todos eles. Saber que não precisa ter toda a sua vida definida aos 25 anos era um alívio. Gostaria de fazer outra faculdade antes de começar a trabalhar. Mas encarar o desconhecido causa ansiedade, dá medo. “Não gosto de não saber.”, já disse inúmeras vezes. Mas, no fim das contas, quem sabe?

Talvez até saiba, e o que lhe falte sejam forças para seguir por um caminho desconhecido. Falta coragem, talvez? Aprendeu a tentar viver um dia de cada vez, dando passos de bebê. “Ninguém nasceu para correr, você precisa aprender a andar e, antes disso, vai gatinhar.”, seu psicólogo disse, depois de perguntar: “Você tem 25 anos, por que tem que ter toda sua vida definida agora?”. A resposta, evidentemente, foi “Não sei.”, porque Maitê, apesar de não gostar de saber, não sabia. E precisava aprender que não saber, nesse caso, não é um problema. Pare de tentar controlar tudo a seu redor, Maitê!

(não precisa de remédios)
(quer paz)

Perde a paciência com as expectativas que colocam nela, como se ela fosse perder seu tempo tentando satisfazer os outros e não a si mesma... Ora, já não é difícil permanecer verdadeira a si mesma num mundo onde qualquer um tem uma opinião para dar, então a partir de agora, Maitê deve deixar de atender às suas expectativas para atender às dos outros? Nunca, never, je, semper. Jamais!

Não quer ser outra pessoa, quer que as pessoas entendam que Maitê é quem é, e não quem esperam. Maitê é uma tela em construção, e não, uma Romero Britto finalizada, à venda para “um pretendente”, para quem ela não pode mostrar sua verdadeira face. (cru) Deve lembrar que, quando as pessoas colocam as expectativas delas no que elas esperam que Maitê se torne, na verdade, elas estão projetando suas expectativas numa Maitê inexistente. Na Maitê de Romero Britto. Repetia para si: “Eu não sou a Maitê que esperam que eu seja, e nunca vou ser. Vou fazer o que eu quero, da forma que eu quero, quando eu quero.”

Dois anos depois, esperando naquela sala com almofadas verdes, lembra, não da primeira consulta, mas de quem era quando chegou lá. Se irritava com pequenas coisas e com pessoas se metendo em sua vida. Hoje, vê todas as opiniões passando como as águas de um rio cujas águas não lhe tocam. Maitê não se molha nas águas do rio das opiniões alheias, nem nas cores das telas de Romero Britto.

Ignorou.
Ignora.
Maitê se veste com inúmeras cores, algumas que descobriu sozinha. Outras, teve ajuda. Descobriu sua tela abstrata e subjetiva, diferente de qualquer outra existente no mundo. Única em sua totalidade, realçada por seu novo poder de não se deixar afetar pela irritação de pessoas palpitando em sua vida e suas decisões.

Descobriu, finalmente, o significado de tomar rédeas de sua vida.
E ignorar a quem discorda.
Tomou rumo.
Criou seu rumo,
Desenhou seu caminho.

Reuniu toda a sua coragem, e
passo a passo,
Maitê
                conquistou
                                               o mundo.

(seu mundo, de mais ninguém.
Onde ela é Rainha,
Soberana em suas decisões
Em suas afeições

E em suas ações.)