“O que somos?” foi a pergunta lançada naquele
primeiro encontro peculiar. A resposta para a pergunta, é claro, pode ser de
uma variedade imensa. “Somos o que somos”, em referência àquele filme lançado
em 2013 seria uma delas. A criação de um ser divino, cuja existência é questionada
por muitos e venerada por todos? A junção de todas as experiências de alguém?
Ou o que se ama? Ou será que somos nada? Por outro lado, poderíamos ser tudo,
não? Outra resposta subjetiva, a qual talvez não respondesse à pergunta seria a
famosa frase de Hamlet “Ser ou não ser... Eis a questão.”. Shakespeare poderia
ser invocado mais uma vez: “Nós somos feitos do mesmo tecido de que são feitos
os sonhos.”.
(memória)
(somos feitos de poeira estelar)
(somos estrelas, afinal?)
A discussão faria uma mesa de bar formada por
filósofos, psicólogos e poetas entrarem em guerra.
(SOMOS A METAFÍSICA DO UNIVERSO)
“Somos o que comemos.”, ele riu, dando uma garfada
num pedaço de bacon.
(é um porco?)
(silêncio)
De certo modo, talvez ele tivesse razão. Mas talvez
uma pessoa seja muito mais do que parece ser, muito mais do que acredita ser.
Guarda, dentro de si tantas coisas, tantos sentimentos, sonhos, aspirações,
amores e desamores, músicas, livros, filmes, memórias, crenças e descrenças,
palavras não ditas, traumas e explosões de felicidade. Cosmos.
Nada de comum havia naquele primeiro encontro: era
uma sexta-feira, 13 de outubro. Foram a um restaurante cuja decoração era
temática do dia das bruxas. O cardápio havia sido modificado, para pratos com
títulos como: “Marinheiro afogado”, ou seja, camarões ao thermidor; “Bruxa
queimada”, um prato de frango empanado; o filé ao molho madeira, no momento,
era conhecido como “KKK”. De preferência, bem passado. “Açougueiro Decapitado”
era o sorvete de morango com calda especial. Outra sobremesa se chamava “Os
pássaros”, e outra, “Frenesi”. “A vingança dos porcos” poderia ser encontrada
no menu de entradas. “O Exorcista” seria um dos digestivos. Na mesa, uma
pequena abóbora iluminada, entre dois candelabros com velas acesas, ligadas por
teias de aranha.
A loja de decoração ao lado do restaurante, no
entanto, não reconhecia a existência do dia das bruxas: em pleno outubro já
começara a expor as árvores de Natal. “Como em ‘O Estranho Mundo de Jack’.”,
ela pensou e riu consigo mesma. Dentro do restaurante, o pianista tocava a
trilha sonora de “O Bebê de Rosemary”. Ela tinha um forte sentimento de que, em
algum momento, a música da icônica cena do banheiro de “Psicose” começaria a
ser tocada. O garçom assobiava da mesma forma que se ouve assobiar em “A Morte
tem Cara de Anjo”. “Tubarão” e “O Iluminado” certamente estariam no repertório.
Ela parecia de outro mundo: olhos azuis claros,
maçãs do rosto bem altas, o queixo não muito protuberante. Provavelmente não
era considerada bonita por muitos. Mas algo nela despertou o interesse dele.
Talvez fosse seu jeito que causava nele a impressão de que ela parecia ver tudo
acontecer sem se importar muito. Às vezes falava e dava a impressão de que
estava em outro lugar, não ali. Todos os seus traços mais marcantes poderiam
ser resumidos na palavra “estranha”. O que é estranho, no entanto, nem sempre é
ruim. Esse é um bom lembrete. Em compensação, ele era normal demais, pacato
demais. Ela compensava a normalidade dele. Era o que ele acreditava.
“Será que todas as pessoas são assim?”, ela
devaneou depois de alguns momentos em silêncio.
“Assim como?”
“Maiores por dentro.”
“Todos nós temos um Universo inteiro dentro de
nós.”
“Eu quero ver.”, ela deu um sorriso daqueles que
permitem que se veja todos os dentes “Cada um desses Universos.”
“Você não pode, estão escondidos, sabe...”
“Onde?”
“Dentro.”
“Lá dentro?”
“Isso, bem fundo.”
“Mas e se eu arrancar sua pele?”, ela questionou,
num tom mais baixo que o normal.
“O que você disse?”
“Eu quis dizer: se eu arrancar sua pele, será que
eu posso ver o Universo dentro e você?”
Sorriram e voltaram a comer.
Ele, ansiava por descobrir mais a respeito de uma
moça com um Universo tão peculiar dentro de si.
Ela, só pensava naquela pele bronzeada sendo
arrancada.
Silêncio.