Nem lembrava direito como foi a primeira vez que
chegara ali, dois anos atrás. Lembrava que as almofadas da sala de espera eram
verdes, e assim permaneceram até hoje. Lembrava, também, da reação de seus pais
ao descobrirem que estava buscando ajuda profissional: ao contrário do que
esperava, ficaram felizes. Acharam que ela estava indo para aprender a
obedecê-los, e curar seu “espírito rebelde”. Pelo contrário, sua intenção era
se livrar das amarras das idealizações. Pretendia respirar um pouco diante do
sufoco causado pela repressão de não poder ser quem é.
O problema de Maitê nunca foi existencial: sabia
muito bem quem era desde sempre. O que não sabia, no entanto, era como lidar
com a repressão de todos a seu redor. Todos esperavam que Maitê agisse de uma
certa forma, que seguisse um certo padrão. Deveria parecer uma Barbie sempre
que fosse sair de casa, muito bem vestida e maquiada. Cabelos impecáveis e
cílios postiços cuidadosamente colocados. Deveria ir para a academia, ficar com
as pernas grossas, barriga chapada e braços bonitos. Nunca seria bonita se não fosse magra. A pele, deveria estar sempre
lisa. Deveria parecer inteligente, claro, porque nem só de aparência vive a sociedade,
mas não muito inteligente para “não assustar os pretendentes”. Não podia
defender suas opiniões, porque “homem não gosta de mulher de personalidade
forte”.
Deveria frequentar os lugares da moda, ouvir as músicas
da moda, e usar o vestido de seda da moda. Seus amigos, certamente, devem ser
aqueles que mais causam estardalhaço e chamam mais atenção ao chegar nas festas
e eventos sociais da cidade, pois eram os “populares”. Para completar, tem que
ser muito bem resolvida: aos 25 anos, agora formada numa faculdade que não era
sua primeira opção, deveria saber toda e qualquer coisa que iria acontecer em
sua vida desde hoje, até o dia da sua aposentadoria. Aos 25 anos, Maitê deveria
fazer mil e uma coisas, porque era o que todo mundo esperava dela.
Chegou na sala do psicólogo e, em meio às suas angústias,
foi diagnosticada com ansiedade. Ansiedade. O mal do século. Todo mundo tem.
Alguns teorizam a relação entre a ansiedade e a tecnologia. Talvez devessem
falar em intolerância também. O psicólogo, no entanto, foi muito categórico:
entendia que Maitê sabia quem era, o que ela precisava mudar era a angústia de
se importar com o que as pessoas falavam a seu respeito. Ignorar e seguir em
frente. Ora, como pode ela, ser feliz se consideram quem ela é errado? Maitê se
acha maravilhosa, e acredita que merece do mundo uma maior compreensão. Acha
que, apesar de saber que nunca conseguiria agradar a todos, as pessoas deveriam
reconhecer quão maravilhosa ela é.
Maitê frequenta o cinema, mesmo sozinha, escuta
músicas e bandas antigas – “Música boa não tem idade.”, costuma dizer – e gosta de
vestidos listrados. Não tem corpo escultural e gosta de tatuagens. Odeia saltos
altos e só usa maquiagem em ocasiões especiais. Por vezes, já saiu de casa de
pijama, com um coque mal feito na cabeça. Seus amigos gostam de sair de casa
para conversar sobre inclusão social e feminismo, assistir filmes e comer. Por
falar nisso, Maitê cozinha muito bem, tem um talento especial para a cozinha. Outro
talento dela é fazer maquiagens de halloween e se divertir fazendo isso. Também nunca se importou com a imagem que um “pretendente” poderia ter dela. Se
fosse para gostar dela, que gostasse dela com sua inteligência não tão
excepcional assim e suas opiniões fortes. Encontrariam um meio-termo.
Mas o que a incomodava mais do que qualquer outra
coisa era quando a enchiam de perguntas a respeito de sua vida profissional.
Afinal de contas, por que isso interessa tanto às pessoas, se o trabalho de Maitê
seria apenas uma parcela do seu dia, o que ela faz para ganhar dinheiro, e não um
fator tão determinante na sua personalidade quanto seria seu livro preferido?
Maitê não era seu trabalho, que ela ainda nem havia escolhido. Maitê era muito
mais do que viam nela.
Maitê é uma tela em branco, cujas cores vão
surgindo com o tempo, aos poucos. Devagar. Sutilmente.
No entanto, as pessoas esperam ver essa tela
preenchida tão rápido quanto num piscar de olhos. Não satisfeitas com a
necessidade de uma rápida pintura, as pessoas criaram uma imagem de Maitê. Cada
um espera uma coisa, cada um acredita que ela deveria seguir por um caminho,
cada um acha que ela “tem que”, “tem que”, “tem que”. “Você tem que...”,
suspirava exausta e farta de pessoas querendo mostrar-lhe o caminho “mais certo”
a cada oportunidade. Todos somos obras de arte.
E Maitê era vista como uma obra de Romero Britto.
Na verdade, todos são vistos como obras de Romero
Britto.
Mas Maitê nunca quis ser algo tão popular, de
formas tão rígidas que devem caber num padrão específico. Maitê nunca quis ser
igual a todo mundo. Preferia ser uma Van Gogh, uma Monet ou, até mesmo, o
quadro desconhecido com suaves cores em aquarela. Para início de conversa,
Maitê nunca gostou da obra de Romero Britto, e sempre se perguntou o porquê de
pessoas pagarem tanto dinheiro por uma obra dele. A resposta, claro, é:
porque é moda. Qualquer um pode ser um Romero Britto, sem muito esforço.
Qualquer um pode criar uma obra de Romero Britto sem muito esforço. É
comercial, todo mundo quer, todo mundo tem. Qualquer um pode comprar. Falta
profundidade e leveza no traço. Maitê, no entanto, não se importa com quem seja
assim, só não quer que esperem dela se transformar nisso. Romero Britto tá na
moda. Maitê não quer ser a moda.
Precisava, então, de ajuda para se libertar e não
se chatear quando ouvia tantos padrões e tantas respostas às suas perguntas
internas. Maitê sabia seu caminho, e sabia quem era, mas precisava aprender a
ignorar toda e qualquer pessoa que a desviasse de seu destino. Se é que destino
existe... Ela nunca gastou muito tempo pensando sobre o desenrolar dos
acontecimentos da sua vida, e da possibilidade de ligação entre todos eles.
Saber que não precisa ter toda a sua vida definida aos 25 anos era um alívio.
Gostaria de fazer outra faculdade antes de começar a trabalhar. Mas encarar o
desconhecido causa ansiedade, dá medo. “Não gosto de não saber.”, já disse
inúmeras vezes. Mas, no fim das contas, quem sabe?
Talvez até saiba, e o que lhe falte sejam forças
para seguir por um caminho desconhecido. Falta coragem, talvez? Aprendeu a
tentar viver um dia de cada vez, dando passos de bebê. “Ninguém nasceu para
correr, você precisa aprender a andar e, antes disso, vai gatinhar.”, seu
psicólogo disse, depois de perguntar: “Você tem 25 anos, por que tem que ter
toda sua vida definida agora?”. A resposta, evidentemente, foi “Não sei.”,
porque Maitê, apesar de não gostar de saber, não sabia. E precisava aprender
que não saber, nesse caso, não é um problema. Pare de tentar controlar tudo a
seu redor, Maitê!
(não precisa de remédios)
(quer paz)
Perde a paciência com as expectativas que colocam nela, como se ela fosse perder seu tempo tentando satisfazer os outros e não a si mesma... Ora, já não é difícil permanecer verdadeira a si mesma num mundo onde qualquer um tem uma opinião para dar, então a partir de agora, Maitê deve deixar de atender às suas expectativas para atender às dos outros? Nunca, never, je, semper. Jamais!
Não quer ser outra pessoa, quer que as pessoas
entendam que Maitê é quem é, e não quem esperam. Maitê é uma tela em
construção, e não, uma Romero Britto finalizada, à venda para “um pretendente”,
para quem ela não pode mostrar sua verdadeira face. (cru) Deve lembrar que,
quando as pessoas colocam as expectativas delas no que elas esperam que Maitê
se torne, na verdade, elas estão projetando suas expectativas numa Maitê
inexistente. Na Maitê de Romero Britto. Repetia para si: “Eu não sou a Maitê
que esperam que eu seja, e nunca vou ser. Vou fazer o que eu quero, da forma
que eu quero, quando eu quero.”
Dois anos depois, esperando naquela sala com
almofadas verdes, lembra, não da primeira consulta, mas de quem era quando
chegou lá. Se irritava com pequenas coisas e com pessoas se metendo em sua
vida. Hoje, vê todas as opiniões passando como as águas de um rio cujas águas
não lhe tocam. Maitê não se molha nas águas do rio das opiniões alheias, nem
nas cores das telas de Romero Britto.
Ignorou.
Ignora.
Maitê se veste com inúmeras cores, algumas que
descobriu sozinha. Outras, teve ajuda. Descobriu sua tela abstrata e subjetiva,
diferente de qualquer outra existente no mundo. Única em sua totalidade,
realçada por seu novo poder de não se deixar afetar pela irritação de pessoas
palpitando em sua vida e suas decisões.
Descobriu, finalmente, o significado de tomar
rédeas de sua vida.
E ignorar a quem discorda.
Tomou rumo.
Criou seu rumo,
Desenhou seu caminho.
Reuniu toda a sua coragem, e
passo a passo,
Maitê
conquistou
o
mundo.
(seu mundo, de mais ninguém.
Onde ela é Rainha,
Soberana em suas decisões
Em suas afeições
E em suas ações.)