quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Um presente.

Um grilo, uma águia e uma raposa.
Perdão, liberdade e proteção.

Com o grilo, foi uma memória.
Ali, observando aquela vela, ouvi a cantiga do grilo.
Não via mais nada, nem as plantas ao meu redor,
Nem ouvia os irmãos por perto,
Éramos só eu e o grilo, quando fui imediatamente
(e subitamente!)
Transportada para memórias que habitavam em mim
Cuja presença eu desconhecia totalmente:
Lá,  nas profundezas de minhas lembranças
Estava eu, aos meus vinte e cinco anos de idade,
Em pé, vendo uma versão de mim tão mais nova, 
Tão mais inocente...
Senti em meus pés as pedras que ficavam na frente
Do quarto da casa de praia dos meus pais
(que saudade desse lugar!
há quantos anos não o visito?)
Onde eu assistia televisão com meus pais:
Uma entrevista com Jean Claude Van Damme.
Eu não sabia quem ele era, 
Mas seus óculos amarelos chamaram minha atenção.
E de repente, minha atenção se desviou para o grilo
Eu não podia vê-lo, mas o ouvia.
Foi quando perguntei à minha mãe o que era aquele barulho.
"É um grilo.", ela me respondeu.
"A gente pode matar?", foi minha resposta.
Acho que eu queria que o barulho parasse.
Eventualmente, o cantar do grilo se transformou em paz.
A memória, então, se esvaiu de mim,
E retornei ao grilo do hoje.
Chorei, pedindo desculpas por ter desejado sua morte,
Por tê-lo rejeitado, um ser tão pequenino, tão inofensivo...!
Perdi perdão à Mãe Natureza.
Ao mesmo tempo que me perdoei,
Me perdoei de todas as culpas que me habitavam, 
Por todos aqueles que amei e não soube amar,
Por todos aqueles que machuquei com um amor infantil, 
Egoísta e orgulhoso!
Me desculpei com todos, e me perdoei por todos.
Memória e perdão.
Descobri que "perdão" é uma palavra linda,
E sua efetiva ação é um presente que você dá a si mesmo.

Com a águia, foi uma transformação.
Foi livrar-me de amarras,
De um sentimento que não devia me pertencer.
(mais uma vez, aquela parcela de culpa
dessa vez, por ter deixado alguém que eu não queria deixar
a dor do abandono sentida por quem partiu
quem parte também sofre às vezes
e em mim, doeu demais)
Estava quase dentro da fogueira, foi o que disseram.
Sentada na minha "posição de pajé", como gosto de dizer,
Com o rosto entre as pernas,
Vi minhas mãos se transformarem nas garras de uma águia,
De minhas costas, saíam asas. Minhas asas.
Era eu desabrochando, criando asas para voar para bem longe
Longe daquele que não mais me habitava,
De quem não me fazia mais bem.
Não, não doeu. Não senti, apenas aconteceu, apenas vi.
Por cima do ombro, vi os ossos que formavam minhas asas
Saindo e criando penas.
E de repente, ao me projetar para fora de mim,
Vi os traços de meu rosto se transformarem no rosto de uma águia. 
E me vi voando por florestas, livre, como sempre fui.
Livre, como deveria ter permanecido.
A águia foi a quebra das minhas correntes.
(logo, não estava mais presa a ele)

E a raposa? Ah, a raposa...
A raposa é minha amiga, minha protetora.
Como, eu não sei, mas a informação,
O meu sentimento é que ela está comigo sempre.
Nunca me deixa, sob hipótese alguma.
Num lugar escuro, eu andava.
Apenas eu, iluminada.
Sempre, iluminada.
Mas eu não estava só, nem com medo.
Outra vez saí de mim e me vi 
Caminhando, cheia de luz.
Ao meu lado, andava uma raposa.
Uma raposa grande e branca, cujas patas e rabo eram fogo.
Aquela raposa conhecida pelos Apache 
Como quem presenteou os humanos com o fogo.
Minha raposa de fogo.
Ela me viu ao nos observar de longe.
Lembro que sorri para ela, e ela sorriu de volta.
Foi rápido, apenas um vislumbre.
Logo, eu estava de volta, deitada na minha rede.
Mas ela não me deixou.
Permaneceu e reapareceu para mim,
Seu rosto nítido na fogueira.
Minha raposa do fogo.

Tudo retorna ao fogo,
A ele tudo pertence,
E ele a tudo consome.
Por ele, tudo acabará.