terça-feira, 17 de setembro de 2019

Janela do desabrochar

O que faz de você quem você é?
Seus CD's arranhados, livros rasgados,
O LP do Pink Floyd que era do seu pai e você não pode ouvir porque não tem uma vitrola,
Aquele cassete que não pode mais ser exibido,
Aquela carta esquecida numa caixa de lembranças, nunca mais lida,
"Sua lógica torta..."
As tatuagens marcadas em seu corpo, até mesmo aquelas que você ainda não fez...
Aquele *** gasto com um jantar com seus amigos,
Uma palavra doce, uma boa piada,
Aquela banda cujas músicas você não escuta desde a adolescência
Ou aquele filme que você vê ao menos uma vez ao ano...
Os amores frustrados,
As paqueras que se tornaram amigos...
As partes esquecidas de você?
Tudo faz parte de você?
Você já fechou os olhos
E tentou entrar dentro da sua pele?
Já parou para sentir seu sangue correndo em suas veias,
Seus órgãos pulsando, seu coração batendo,
Seus pensamentos reverberando da cabeça aos pés
E sua energia se expandindo para o resto do mundo?
Você já parou para ouvir o seu silêncio,
Quando o único som que sai de você é a sua respiração?
Você pode até quase ouvir o seu coração ecoando dentro de você!
Você já teve sua pele marcada por um toque
A ponto de você às vezes senti-lo novamente, quando ninguém está te olhando?
Já parou para sentir o ar frio da noite encostando na pele dos seus braços
E o calor de uma fogueira em seu rosto?
É tanta informação que os ouvidos ficam com um zumbido,
Quase como gritos cantando em sua cabeça.

Transporte-se para dentro de si e perceba
Quanta vida há dentro de você,
Como o oceano, tão vasto, tão cheio de coisas impossíveis,
Tão... Assustador!

Pare para imaginar qual a cor do seu amor
E quão avassalador pode ser seu ódio.
Todas as suas ações e omissões,
Todos os preços que você já pagou
(TODOS OS PÃES QUE O DIABO AMASSOU E JÁ TE FEZ COMER
Você diria que ele é um bom padeiro?)

A sinestesia do ser, do ter, do crer e sentir.
Tiramos fotos para parar o tempo, congelar memórias.
Para nos transmutar em arte,
Para guardar na memória todas as peles que já vestimos,
Para lembrar de quem fomos quando nos tornamos quem nos tornamos.
Quando tudo o que faz de você quem você é
Se tornar tudo isso e um pouco mais
E celebrar quem se está sendo hoje,
Ainda que a lacuna aberta pelo vazio de quem ainda seremos seja tão assustadora
Quanto encarar um buraco negro em sua mais pura e insana forma.
Hoje você já é muito mais do que acredita ser.
Desabroche.



(obrigada e feliz aniversário, Carol!)






quarta-feira, 4 de setembro de 2019

A Bacurau

Acho que a cada período de tempo surge alguma grande obra que mostre o Nordeste ao resto do mundo. Talvez esses períodos sejam longos ou não, não acho que sou muito boa em determinar a passagem do tempo como as outras pessoas fazem. O que eu posso afirmar é que “Morte e Vida Severina” e “O Auto da Compadecida” fizeram parte da minha vida. Lembro da primeira vez que li “Morte e Vida Severina”, aos 14 anos. Nada fazia sentido, ao passo em que tudo fazia sentido. “O Auto da Compadecida” eu nem consigo me lembrar de ter vivido sem essa obra fazer parte da minha vida. Não lembro de uma época em que a criação de Ariano não corresse em minhas veias. Depois veio “O Santo e a Porca”: “Ai, a crise! Ai, a carestia!”, e aí veio Mad Max.

Mad Max, que não tem nada a ver com o Nordeste brasileiro, até que, em um momento de delírio ou, como eu gosto de chamar “Orgasmo da Gúliver”, surgiu uma ideia para relacionar Mad Max, ao coronelismo no Nordeste brasileiro, usando a água como ponto comum e, a partir disso, entrelaçar Arte, História e Direito, analisando as figuras de poder dos dois universos e, ainda, usando o caráter de vitalidade da água para vê-la pelas lentes das estruturas de poder. Água é vida. E nesse caso, água é poder. Em Mad Max e no Coronelismo, a água deixa de ser um Direito Humano, conforme atestado pela Organização das Nações Unidas para se tornar moeda de poder. Quanto mais água se controla, maior o curral. Isso devia ter sido um artigo científico mas admito que, por falta de vergonha na cara, ainda não o publiquei.

E onde você entra nisso? Essa carta não é para Mad Max, nem para Ariano Suassuna ou para João Cabral de Melo Neto. Essa carta é pra você, Bacurau. Essa carta é pra você, por ter me feito sentir tanta coisa que eu nem lembrava que poderia sentir assistindo um filme. Mas arte é isso, né? Arte é o que nos faz sentir. Arte é o que nos faz refletir. Arte é resistir. E você, Bacurau… Eu não sei como você fez isso, meu bem, mas você conseguiu não apenas superar minhas expectativas quanto ao que eu iria assistir, mas me levou para uma viagem por toda a minha vida. Ah, e que viagem!

Eu ainda estou desnorteada com a carga emocional que você depositou em mim.

Voltei à minha infância, a um lugar chamado Laranjeiras do Abdias, um lugar para onde meu avô que não está mais aqui me levava quando menina. Lá, morava dona Inês, a mãe dele. Minha bisavó. A primeira memória que eu tenho de lá, é de estar num riacho que passava pelo sítio e, quando me dou conta, tinha uma cobra perto de mim (segundo histórias, era comum que animais meio perigosos se aproximassem de mim quando pequena). Ora, não me pergunte que cobra era essa, porque eu não lembro. Mas eu lembro de dona Inês. Ela matou a cobra com uma pedra. Eu a vi como uma super-heroína naquele dia. Consigo lembrar claramente da imagem que minha mente memorizou nesse fia. Outra memória doce era a colcha azul que ficava em cima da cama na qual eu gostava de deitar.

Mas acho que a memória mais marcante que eu tenho de Laranjeiras é de ter visto uma pessoa morta pela primeira vez em minha vida. Lembro de dona Inês, os cabelinhos todos brancos, deitada em cima da mesa, coberta por um lençol tão branco quanto seus cabelos. Não posso dizer com certeza que foi em cima da mesa, porque todos sabemos que a memória é uma criança brincalhona e muitas vezes pode nos pregar peças. Mas lembro de ter perguntado à minha mãe se era ela que estava ali, se estava morta. “É uma boneca, filha.”, mainha me disse, tentando proteger a criança cuja idade podia ser contada nos dedos de uma mão. Eu sabia que ela tinha mentido pro meu bem. Eu sabia que aquilo era um adeus. Mas eu nunca senti esse adeus. Não até hoje. Não até você. Obrigada por isso. Ora, eu era uma criança! Mas eu pude ter acesso à minha ancestralidade. Cruzar hoje com você foi quase uma comunhão espiritual.

Cruzar com você foi tão forte que ainda estou me tremendo, ainda um pouco desnorteada, enquanto te escrevo. 

À medida em que eu te deixava entrar em mim, à medida em que me apaixonava por cada pequeno detalhe seu  (e por Lunga, VOU MENTIR PRA QUÊ?), eu refletia: será que mais uma vez a água vai ser usada como moeda de poder? “Será que esse filme vai ser tipo Mad Max, só que no Nordeste?” e que satisfação a minha ao levar um tapa na cara da resistência! Que delícia! Que empoderador! Quebrar a cara nunca foi tão bom! Que delícia ver a teimosia e a força do Nordestino! A cada minuto que passava, quando eu ia entendendo o que eu estava vendo, eu ficava me perguntando: “O que esse povo fez pra merecer isso?”, mas você tirou minhas dúvidas. O povo de Bacurau resistiu. Me lembrou da resistência do povo de Mossoró ao ataque de Lampião e seu bando.

O povo de Bacurau resistiu, como o Nordeste resiste. Somos os próprios heróis dessa história. Mesmo com tantas “mortes morridas”, Bacurau resistiu. Sempre de orelha em pé, sem baixar a cabeça para um inimigo do povo, um engomadinho ganancioso sedento por poder puro, disfarçado de benfeitor mas pronto pra nos apunhalar pelas costas. Em Bacurau, um forasteiro não governa. Em Bacurau, quem governa é o povo. Quem protege um ao outro é o povo. É Lunga. Lunga, que me despertou a memória da adolescência, que tem um quê de Curupira, o defensor das matas. Lunga é o defensor de Bacurau, assim como todos os outros locais. É Dona Domingas. DONA DOMINGAS, ESSA MULHER QUE EU GOSTARIA DE TER CONHECIDO EM MINHA ADOLESCÊNCIA, essa mulher intrépida e forte. Esse povo destemido! Que retrato lindo que você mostrou ao mundo! Me sinto representada e empoderada. Meu Deus, como estou empoderada!

Mas vou parar por aqui, porque eu não vou te dizer mais nada sobre o que você é, porque você sabe tão bem quanto eu o que você é. Ninguém diz a um nordestino quem ele é, além dele mesmo.



Tem gente que vai dizer que é pantim, mas eu vou te contar uma coisa: você entrou na minha pele e agora corre em meu sangue nordestino. Espero que você possa conquistar o mundo.











domingo, 1 de setembro de 2019

Setembro Amarelo

(observa a fumaça saindo da xícara)
(é chá de camomila)
E o setembro, é amarelo.
O setembro é amarelo como o amarelo de Van Gogh
Amarelo que ele usava quando estava feliz
(nas raras vezes em que experimentou a felicidade real e plena, o amarelo estava lá)
Amarelo dos campos de trigo,
Dos girassóis,
Presente também nos autorretratos,
Cuja ausência de vida e felicidade
Estavam estampadas nos olhos tristes daquele homem
Os autorretratos do artista insaciável e implacável,
Sofrido, internado, intenso, marginalizado.
REJEITADO!
(um pobre demônio, odiado por tantos ignorantes que não entendiam…)
(em minha mente, faço de meus braços seu aconchego)
(volto no tempo para lhe dizer: “Sim, você é amado. Sua arte transcende os tempos e aqui permanecerá até mesmo depois que eu me for.”)
O tiro no peito naquele 27 de Julho
O TIRO QUE CAUSOU DOIS DIAS DE SOFRIMENTO!!!
“A tristeza vai durar para sempre...”
E morreu.
Tanta dor que tirou a própria vida…
Que forte, que intenso…
Uma decisão tão definitiva…
Que digno de reflexão!
Em seu túmulo, girassóis amarelos.


Amarelos como setembro,
setembroamarelomêsdeprevençãoaosuicídio!

O mês dos holofotes dos Digital Influencers,
Aqueles que tem ibope falando verdades genéricas,
Que sentam num trono de caveiras da autoestima alheia,
Ao dizer que devemos nos amar mais.
Como se fosse um passo-a-passo simples de seguir,
Aqueles que abrem o “inbox” para conversar
Mas pelas costas, dizem que Fulano tem “a energia pesada”.
E falam de suicídio,
Como se fosse simples,
Como se não fosse delicado…
Como se não existissem doenças mentais,
COMO SE FOSSE POBREZA DE ESPÍRITO!!
Como se “amor próprio” fosse uma droga vendida em qualquer esquina…
AMOR PRÓPRIO VIROU RECEITA DE BOLO AGORA, FOI?
FALA DE PREVENIR SUICÍDIO
SÓ FALA DE AMOR PRÓPRIO
E AINDA ESQUECE DAS DOENÇAS MENTAIS
PORQUE DOENÇA MENTAL HOJE EM DIA É TABU
Mas você precisa se amar mais…

DIGA COMO!
ME FALE, Ó GRANDE GURU DA AUTOESTIMA
DIGA COMO ME OLHAR NO ESPELHO E GOSTAR DO QUE VEJO
DIGA COMO NÃO ME SENTIR REPUGNANTE
DIGA COMO ESQUECER AQUELA BESTEIRA QUE FALEI HÁ CINCO ANOS!
DIGA COMO ARRUMAR FORÇAS PARA LEVANTAR DA CAMA!
DIGA COMO! EU INSISTO!
Diga como… Como eu consigo fazer uma atividade cotidiana, a mais básica… Sem que minhas energias acabem completamente…
QUANDO MAL POSSO PRESTAR ATENÇÃO AO MUNDO EM MEIO A TANTOS GRITOS DA MINHA CABEÇA
QUANDO RESPIRAR É DIFÍCIL
PORQUE MEUS PENSAMENTOS RUDES
SÃO
ALTOS
DEMAIS
E OS SENTIMENTOS HOSTIS TORNAM O DESERTO DA MINHA MENTE UM LUGAR INÓSPITO
(o deserto amarelo como o setembro)
ONDE NEM FLOR NASCE!
NEM MESMO UMA ERVA DANINHA?

(estou cansada…
Recolho-me, deito em posição fetal)
Minha cabeça não descansa,
Meus olhos não páram…
As cores não são mais vívidas,
Nem mesmo o amarelo do setembro!
(e penso em desistir, em me machucar, afinal o mundo provavelmente será melhor sem mim)

VIVO SUFOCADA,
Pressa no pesar da minha própria existência
E dói, e pesa…
E me canso do peso de quem sou
Quero sair de mim!
Mas é claro que não consigo…
(suspira, deixa seu peso cair no sofá)
Preciso me amar,
Não posso ser outra pessoa, afinal.
Não tenho outra escolha.
Ceder à morte, nunca.

Na rádio, ouço pela segunda vez ao dia “Hey Jude” tocar…
“You don’t have to carry the weight of the world on your shoulder...”
Nem ele, nem eu, nem ninguém.
Considero isso um sinal do Universo,
Para viver um dia de cada vez,
Tentar aprender a me amar,
Um passo de cada vez,
Uma pequena (ou grande) felicidade de cada vez,
Plantando um girassol em cada passo de meu trajeto,
Respiro!
Uma vitória por vez.
Calando as caraminholas da minha cabeça pouco a pouco…

Ah, o chá esfriou…
Agora posso bebê-lo.
Talvez a camomila me acalme…
Engraçado que camomila é amarelo, né.
Amarelo, Virgínia.
Que nem setembro amarelo.

(mas todo dia é dia de lutar
contra os vilões dentro de nós)