Acho que a cada período de tempo surge alguma grande obra que mostre
o Nordeste ao resto do mundo. Talvez esses períodos sejam longos ou
não, não acho que sou muito boa em determinar a passagem do tempo
como as outras pessoas fazem. O que eu posso afirmar é que “Morte
e Vida Severina” e “O Auto da Compadecida” fizeram parte da
minha vida. Lembro da
primeira vez que li “Morte e Vida Severina”, aos 14 anos. Nada
fazia sentido, ao passo em que tudo fazia sentido.
“O Auto da Compadecida” eu nem consigo me lembrar de ter vivido
sem essa obra fazer parte da minha vida. Não lembro de uma época em
que a criação de Ariano não corresse em minhas veias. Depois veio
“O Santo e a Porca”: “Ai, a crise! Ai, a carestia!”, e aí
veio Mad Max.
Mad
Max, que não tem nada a ver com o Nordeste brasileiro, até que,
em um momento de delírio
ou, como eu gosto de chamar “Orgasmo da Gúliver”, surgiu uma
ideia para relacionar Mad Max, ao coronelismo no Nordeste brasileiro,
usando a água como ponto comum e, a partir disso, entrelaçar Arte,
História e Direito, analisando as figuras de poder dos dois
universos e,
ainda, usando o caráter de vitalidade da água para vê-la pelas
lentes das estruturas de poder. Água é vida. E nesse caso, água é
poder. Em Mad Max e no Coronelismo, a água deixa de ser um Direito
Humano, conforme atestado pela Organização das Nações Unidas para
se tornar moeda de poder. Quanto mais água se controla, maior o
curral. Isso devia ter sido um artigo científico mas admito que, por falta de vergonha na cara, ainda não o publiquei.
E
onde você entra nisso? Essa carta não é para Mad Max, nem para
Ariano Suassuna ou para João Cabral de Melo Neto. Essa carta é pra
você, Bacurau. Essa carta é pra você, por ter me feito sentir
tanta coisa que eu nem lembrava que poderia sentir assistindo um
filme. Mas arte é isso, né? Arte é o que nos faz sentir. Arte é o
que nos faz refletir. Arte é resistir. E você, Bacurau… Eu não
sei como você fez isso, meu bem, mas você conseguiu não apenas
superar minhas expectativas quanto ao que eu iria assistir, mas me
levou para uma viagem por toda a minha vida. Ah, e que viagem!
Eu
ainda estou desnorteada com a carga emocional que você depositou em
mim.
Voltei
à minha infância, a um lugar chamado Laranjeiras do Abdias, um
lugar para onde meu avô que
não está mais aqui
me levava quando menina. Lá, morava dona Inês, a mãe dele. Minha
bisavó. A primeira memória que eu tenho de lá, é de estar num
riacho que passava pelo sítio e, quando me dou conta, tinha uma
cobra perto de mim (segundo histórias, era comum que animais meio
perigosos se aproximassem de mim quando pequena). Ora, não me
pergunte que cobra era essa, porque eu não lembro. Mas eu lembro de
dona Inês. Ela matou a cobra com uma pedra. Eu a vi como uma
super-heroína naquele dia. Consigo lembrar claramente da imagem que minha mente memorizou nesse fia. Outra memória doce era a colcha azul que
ficava em cima da cama na qual eu gostava de deitar.
Mas
acho que a memória mais marcante que eu tenho de Laranjeiras é de
ter visto uma pessoa morta pela primeira vez em minha vida. Lembro de
dona Inês, os cabelinhos todos brancos, deitada
em cima da mesa, coberta por um lençol tão branco quanto seus
cabelos. Não posso dizer com certeza que foi em cima da mesa, porque
todos sabemos que a memória é uma criança brincalhona e muitas
vezes pode nos pregar peças. Mas lembro de ter perguntado à minha
mãe se era ela que estava ali, se estava morta. “É uma boneca,
filha.”, mainha me disse, tentando proteger a criança cuja idade
podia ser contada nos dedos de uma mão. Eu sabia que ela tinha
mentido pro meu bem. Eu sabia que aquilo era um adeus. Mas eu nunca
senti esse adeus. Não até hoje. Não até você. Obrigada por isso.
Ora, eu era uma criança! Mas eu pude ter acesso à minha
ancestralidade. Cruzar hoje com você foi quase uma comunhão
espiritual.
Cruzar
com você foi tão forte que ainda estou me tremendo, ainda um pouco
desnorteada, enquanto te escrevo.
À
medida em que eu te deixava entrar em mim, à medida em que me
apaixonava por cada pequeno detalhe seu (e por Lunga, VOU MENTIR PRA QUÊ?), eu refletia: será que mais
uma vez a água vai ser usada como moeda de poder? “Será que esse
filme vai ser tipo Mad Max, só que no Nordeste?” e que satisfação
a minha ao levar um tapa na cara da resistência! Que delícia! Que empoderador!
Quebrar a cara nunca foi tão bom! Que delícia ver a teimosia e a
força do Nordestino! A cada minuto que passava, quando eu ia
entendendo o que eu estava vendo, eu ficava me perguntando: “O que
esse povo fez pra merecer isso?”, mas você tirou minhas dúvidas.
O povo de Bacurau resistiu. Me lembrou da resistência do povo de
Mossoró ao ataque de Lampião e seu bando.
O
povo de Bacurau resistiu, como o Nordeste resiste. Somos os próprios
heróis dessa história. Mesmo
com tantas “mortes morridas”, Bacurau resistiu. Sempre de orelha
em pé, sem baixar a cabeça para um inimigo do povo, um engomadinho
ganancioso sedento por poder puro, disfarçado de benfeitor mas
pronto pra nos apunhalar pelas costas. Em Bacurau, um forasteiro não
governa. Em Bacurau, quem governa é o povo. Quem protege um ao outro
é o povo. É Lunga. Lunga, que me despertou a memória da
adolescência, que tem um quê de Curupira, o defensor das matas.
Lunga é o defensor de Bacurau, assim como todos os outros locais. É Dona
Domingas. DONA DOMINGAS, ESSA MULHER QUE EU GOSTARIA DE TER CONHECIDO
EM MINHA ADOLESCÊNCIA, essa mulher intrépida e forte. Esse povo
destemido! Que retrato lindo que você mostrou ao mundo! Me sinto
representada e empoderada. Meu Deus, como estou empoderada!
Mas
vou parar por aqui, porque eu não vou te dizer mais nada sobre o que
você é, porque você sabe tão bem quanto eu o que você é.
Ninguém diz a um nordestino quem ele é, além dele mesmo.
Tem
gente que vai dizer que é pantim, mas eu vou te contar uma coisa:
você entrou na minha pele e agora corre em meu sangue nordestino. Espero que você possa conquistar o mundo.