quarta-feira, 4 de setembro de 2019

A Bacurau

Acho que a cada período de tempo surge alguma grande obra que mostre o Nordeste ao resto do mundo. Talvez esses períodos sejam longos ou não, não acho que sou muito boa em determinar a passagem do tempo como as outras pessoas fazem. O que eu posso afirmar é que “Morte e Vida Severina” e “O Auto da Compadecida” fizeram parte da minha vida. Lembro da primeira vez que li “Morte e Vida Severina”, aos 14 anos. Nada fazia sentido, ao passo em que tudo fazia sentido. “O Auto da Compadecida” eu nem consigo me lembrar de ter vivido sem essa obra fazer parte da minha vida. Não lembro de uma época em que a criação de Ariano não corresse em minhas veias. Depois veio “O Santo e a Porca”: “Ai, a crise! Ai, a carestia!”, e aí veio Mad Max.

Mad Max, que não tem nada a ver com o Nordeste brasileiro, até que, em um momento de delírio ou, como eu gosto de chamar “Orgasmo da Gúliver”, surgiu uma ideia para relacionar Mad Max, ao coronelismo no Nordeste brasileiro, usando a água como ponto comum e, a partir disso, entrelaçar Arte, História e Direito, analisando as figuras de poder dos dois universos e, ainda, usando o caráter de vitalidade da água para vê-la pelas lentes das estruturas de poder. Água é vida. E nesse caso, água é poder. Em Mad Max e no Coronelismo, a água deixa de ser um Direito Humano, conforme atestado pela Organização das Nações Unidas para se tornar moeda de poder. Quanto mais água se controla, maior o curral. Isso devia ter sido um artigo científico mas admito que, por falta de vergonha na cara, ainda não o publiquei.

E onde você entra nisso? Essa carta não é para Mad Max, nem para Ariano Suassuna ou para João Cabral de Melo Neto. Essa carta é pra você, Bacurau. Essa carta é pra você, por ter me feito sentir tanta coisa que eu nem lembrava que poderia sentir assistindo um filme. Mas arte é isso, né? Arte é o que nos faz sentir. Arte é o que nos faz refletir. Arte é resistir. E você, Bacurau… Eu não sei como você fez isso, meu bem, mas você conseguiu não apenas superar minhas expectativas quanto ao que eu iria assistir, mas me levou para uma viagem por toda a minha vida. Ah, e que viagem!

Eu ainda estou desnorteada com a carga emocional que você depositou em mim.

Voltei à minha infância, a um lugar chamado Laranjeiras do Abdias, um lugar para onde meu avô que não está mais aqui me levava quando menina. Lá, morava dona Inês, a mãe dele. Minha bisavó. A primeira memória que eu tenho de lá, é de estar num riacho que passava pelo sítio e, quando me dou conta, tinha uma cobra perto de mim (segundo histórias, era comum que animais meio perigosos se aproximassem de mim quando pequena). Ora, não me pergunte que cobra era essa, porque eu não lembro. Mas eu lembro de dona Inês. Ela matou a cobra com uma pedra. Eu a vi como uma super-heroína naquele dia. Consigo lembrar claramente da imagem que minha mente memorizou nesse fia. Outra memória doce era a colcha azul que ficava em cima da cama na qual eu gostava de deitar.

Mas acho que a memória mais marcante que eu tenho de Laranjeiras é de ter visto uma pessoa morta pela primeira vez em minha vida. Lembro de dona Inês, os cabelinhos todos brancos, deitada em cima da mesa, coberta por um lençol tão branco quanto seus cabelos. Não posso dizer com certeza que foi em cima da mesa, porque todos sabemos que a memória é uma criança brincalhona e muitas vezes pode nos pregar peças. Mas lembro de ter perguntado à minha mãe se era ela que estava ali, se estava morta. “É uma boneca, filha.”, mainha me disse, tentando proteger a criança cuja idade podia ser contada nos dedos de uma mão. Eu sabia que ela tinha mentido pro meu bem. Eu sabia que aquilo era um adeus. Mas eu nunca senti esse adeus. Não até hoje. Não até você. Obrigada por isso. Ora, eu era uma criança! Mas eu pude ter acesso à minha ancestralidade. Cruzar hoje com você foi quase uma comunhão espiritual.

Cruzar com você foi tão forte que ainda estou me tremendo, ainda um pouco desnorteada, enquanto te escrevo. 

À medida em que eu te deixava entrar em mim, à medida em que me apaixonava por cada pequeno detalhe seu  (e por Lunga, VOU MENTIR PRA QUÊ?), eu refletia: será que mais uma vez a água vai ser usada como moeda de poder? “Será que esse filme vai ser tipo Mad Max, só que no Nordeste?” e que satisfação a minha ao levar um tapa na cara da resistência! Que delícia! Que empoderador! Quebrar a cara nunca foi tão bom! Que delícia ver a teimosia e a força do Nordestino! A cada minuto que passava, quando eu ia entendendo o que eu estava vendo, eu ficava me perguntando: “O que esse povo fez pra merecer isso?”, mas você tirou minhas dúvidas. O povo de Bacurau resistiu. Me lembrou da resistência do povo de Mossoró ao ataque de Lampião e seu bando.

O povo de Bacurau resistiu, como o Nordeste resiste. Somos os próprios heróis dessa história. Mesmo com tantas “mortes morridas”, Bacurau resistiu. Sempre de orelha em pé, sem baixar a cabeça para um inimigo do povo, um engomadinho ganancioso sedento por poder puro, disfarçado de benfeitor mas pronto pra nos apunhalar pelas costas. Em Bacurau, um forasteiro não governa. Em Bacurau, quem governa é o povo. Quem protege um ao outro é o povo. É Lunga. Lunga, que me despertou a memória da adolescência, que tem um quê de Curupira, o defensor das matas. Lunga é o defensor de Bacurau, assim como todos os outros locais. É Dona Domingas. DONA DOMINGAS, ESSA MULHER QUE EU GOSTARIA DE TER CONHECIDO EM MINHA ADOLESCÊNCIA, essa mulher intrépida e forte. Esse povo destemido! Que retrato lindo que você mostrou ao mundo! Me sinto representada e empoderada. Meu Deus, como estou empoderada!

Mas vou parar por aqui, porque eu não vou te dizer mais nada sobre o que você é, porque você sabe tão bem quanto eu o que você é. Ninguém diz a um nordestino quem ele é, além dele mesmo.



Tem gente que vai dizer que é pantim, mas eu vou te contar uma coisa: você entrou na minha pele e agora corre em meu sangue nordestino. Espero que você possa conquistar o mundo.