domingo, 15 de dezembro de 2019

Guilherme

Seja no circo, na imaginação, no mundo dos sonhos ou na vida real, tem coisa que precisa acontecer. Agora imagine uma apresentação dupla, mas não duas pessoas apresentando a mesma arte. Ele era do ar e ela do fogo. Primeiro entra ele, em silêncio. Sua roupa é verde e a maquiagem azul, quase como o contraponto entre terra e ar, como se ao tirar os pés do chão, pudesse virar parte do ar. Como uma mágica. Em seu rosto, glitter azul, para realçar seus olhos verdes. Lentamente levou a mão na direção da lira. Tocá-la era como um chamado para ela entrar. No segundo em que seu dedo encostou no ferro gelado,

Ela entra.

Veste uma capa vinho e em seu rosto, runas.
Ansuz, Berkana, Raido e Othila.
Luz, Crescimento, Movimento e Conexões.
Significados que não precisavam ser explicados verbalmente, só de olhar as runas, ele entenderia a mensagem. Entenderia a história da jornada deles que os levara até ali. Não precisavam falar toda vez que queriam conversar. Usava uma coroa de galhos, como se fosse um ninho de passarinhos. O cabelo cacheado vermelho solto, balançando ao vento. Pisava firme no chão, parecendo uma anciã. Fogo, ar e terra. Nas mãos dela havia uma vela acesa dentro de um pote de vidro. Ela abaixa e, quando o pote toca o chão… NO MESMO EXATO SEGUNDO, os pés dele sobem ao ar.

Começa a música, “Desperado”.
Lentamente ele inicia seus movimentos e o lugar se ilumina quando a clave dela, que parece um leque, se enche de fogo. Abandona a capa vinho. Sua roupa por baixo é preta. Sempre preta. E assim começa.

“And you ain’t leaving me behind...”
Os movimentos antagônicos dos dois é confortante, como se tivessem sido feitos para isso, Como se tivessem se encontrado para viver aquele momento. Quando o pé dela saía do chão, o corpo dele caía na lira e suas mãos se aproximavam do chão. A dança com fogo dela parecia fazer parte da dança com ar dele e vice-versa. Se completavam à maneira deles. Eu não sabia para quem olhar e não queria perder nem um segundo. Na verdade eu gostaria de poder ver aquilo de novo, de novo e de novo.

Parecia que eu estava sentado vendo aquela dança desde o início dos tempos e que a vida nunca iria acabar. Quantos de mim fui nessa música? Em quantas vidas antes eles já haviam se encontrado? Pareciam ser apenas um, versões diferentes de uma mesma pessoa que já havia vivido demais mas que também não tinha visto nada do mundo. Eles pareciam mensageiros da lembrança de que nessa jornada não estamos sós. Me senti parte deles e os acolhi como uma parte de mim que ainda hei de conhecer.

“But I don’t wanna be alone.”
E termina a música.
Ainda silêncio.
Por que ninguém está aplaudindo, quando todo o meu corpo vibra em resposta ao que estou vendo e sentindo? Faltava algo. Minhas mãos estavam a um segundo de explodir numa palma.

Foi quando ela cuspiu fogo, INCENDIANDO A LIRA, COM ELE LÁ EM CIMA! Ora, que triste maneira de acabar com algo tão bonito, com uma tragédia!

Terra, ar e fogo.

Mas ele não queimou. Ele não se foi, ele não morreu. De onde eu estava conseguia ver seu sorriso. Parecia calmo. E eu sentia, aliás, eu por pouco quase podia sentir sua dor… Só que não doía. O fogo nos acolheu e confortou. Há aconchego no fogo. Então queimamos e renascemos de nossas cinzas que nem chegaram a existir. Intocados. Como mágica. Até hoje não sei se aquilo foi real ou delírio, Mas tem coisa que precisa acontecer. Seja no circo, na imaginação, no mundo dos sonhos ou na vida real.
Precisa acontecer.


(nós iremos acontecer em todos eles)



segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Parece que pra ser mulher, tem que viver na luta.




Tá na barriga e o quarto já é rosa. Já nasce obrigada a usar rosa, mesmo que depois descubra que não gosta. Porque rosa é cor de mulher, né? Rosa é uma cor delicada. É a cor da pureza, da felicidade e do romance. Reza a lenda que, se você fizer cromoterapia com rosa, pode se sentir psicologicamente melhor num ambiente hostil. E ser mulher é isso, né? Ser doutrinada a se sentir melhor num ambiente hostil. O problema é que o mundo todo é naturalmente hostil. E a mulher tem que perdurar. A mulher tem que permanecer. Tem que ser estoica. Tem que abdicar. Tem que sobreviver. Já cresce ouvindo que tem que ser quieta, delicada e SUBMISSA porque se falar demais, é muito “opiniosa” e “nenhum homem vai querer”. Porque é mandona demais. Arrogante demais. Cresce ouvindo que é pra estudar “pra não depender de ninguém e arranjar o namorado que quiser”. Mulher nasce e cresce ouvindo que tem que usar rosa e tem que ser uma rosa. Olhe, pois eu detesto rosa!!! Me processe!

Vocês não percebem o problema dessas falas, né?
E O QUE EU QUERO? NINGUÉM VAI PERGUNTAR NÃO? O QUE EU QUERO É liberdade. Quero ser dona de mim sem que me tornem vilã da minha própria história. Mas ser mulher é isso, né… Nunca sair ilesa. Sobreviver no ambiente hostil pela cor rosa, mas nunca sair ilesa.
Nenhuma mulher sai ilesa de uma denúncia de abuso.
Nenhuma mulher sai ilesa dos holofotes.
Nenhuma mulher sai ilesa de um aborto clandestino.
Nenhuma mulher sai ilesa de ter nascido mulher.
Nenhuma mulher sai ilesa. Nunca.

Então não me dê uma flor no Dia Internacional da Mulher. Todo dia é dia da mulher. Todo dia é dia de luta.


Já parasse pra pensar nisso?