domingo, 16 de fevereiro de 2020

Risoto de Camarão


O camarão já estava pronto e reservado num prato.
“Eu fico estressada quando percebo que tô falando muito de amor.”, ela diz, cortando a cebola. Está fazendo um risoto. Não aguenta mais fazer risoto. Por que as pessoas insistem em pedir para que ela cozinhe esse prato? Não que seu risoto seja ruim, ou que fazê-lo também o seja, só é algo que já cozinhou tanto que não há mais desafio, sabe? E sem desafio, Pistolinha não vive. Fica logo entediada. E há muito cozinhar esse prato já havia se tornado algo mecânico.

“Eu fico estressada porque não fui ensinada a estar vulnerável e confortável com isso, me sinto meio fraca.”, dá uma mexida no caldo: dois litros de água, uma colherzinha de açafrão e caldo de camarão. Volta as mãos para ficar a cebola, bem picadinha, para ninguém reclamar. Em dias em que se sente inspirada a cozinhar, é sua parte preferida. Nunca chora. Tem gente que acha que é um superpoder. Na verdade ela só molha a faca antes de cortar cebola. É só um truque.

“Mas esses dias eu tava aqui pensando sobre aquele término horrível de uns anos atrás, tu lembra?”, ela dá uma olhadela para trás, para se certificar de que está sendo ouvida. “Isso, do celibato que deveria durar só um ano mas acabou durando dois e meio… Eu tava relembrando essa história porque me deparei com umas coisas que talvez eu até já soubesse mas não tinha percebido que sabia… Sabe como é isso, né?”, parou para jogar metade da cebola que havia sido picada da tábua para a panela.

Foram sete lições sobre o amor (sete é um número amigo dela, se quiser testar, chegue de surpresa e pergunte a ela a tabuada do sete), todas em forma de “não”. “Talvez tenha sido quando eu lembrei que amar também é dizer ‘não’.”
1. Não se pode ajudar quem não quer ajuda;
2. Não queira que alguém fique se esse alguém não quer ficar;
3. Não deixe ninguém projetar seus respectivos problemas em você;
4. Não se salva ninguém, você pode segurar a mão da pessoa para lhe passar segurança e tornar o caminho menos árduo;
5. Não faça algo se seu coração não pedir;
6. Não aceite ser tratada mal, principalmente depois de uma demonstração de afeto, fuja se preciso for;
7. Não esqueça que cada um tem seus limites e suas lutas.
Sete lições que estão gravadas em seu coração, quase tatuadas, como se fossem mandamentos.

“Mas acho que a coisa mais importante daquilo tudo foi que eu decidi que ia me amar tanto que eu não ia precisar do amor de mais ninguém.”, sobe o cheirinho delicioso de cebola refogada. Tem que mexer até dourar. “Agora pronto! Tu vem na minha casa, me pede pra te alimentar e ainda vem me chamar de leviana? É de fudê um negócio desse!”, adiciona o arroz à cebola refogada e mexe. Depois bem misturadinho, adiciona meio copo de vinho branco. É uma delícia o som do vinho tocando a panela quente. “Venha cagar regra na minha casa não, visse! Você sabe que aqui, se você pede comida, a história vem necessariamente junto, então fique na sua e escute!”.

Depois ficou mais leve. Quando fez as pazes com os “nãos” que havia recebido e que viria a dar. Dizer um “não” era um tantinho mais difícil do que receber um, embora não fosse o que aparentava. Mas com Pistolinha, é sempre assim: nem tudo é o que parece ser e ela apenas ri das certezas que querem lhe enfiar goela abaixo. Abraçou suas rejeições, o desconhecido e o amanhã. “Venha o que tiver que vir.”, é o que costuma dizer. É o seu rezo de virada de ano. Abraçou as parcelas de amor que querem dar a ela, não por achar que merece pouco, mas por entender que cada um tem suas limitações, assim como ela tem as dela. “E é amor, deveria ser leve, sem cobranças, sem dor… Se dói, não é amor para mim. Aceito o que quiserem me dar, mas o filtro mínimo é esse. Não me machucar, nem ser tratada mal. O amor pra mim tem que ser gentil também. Talvez a gentileza tenha criado o amor, ou o contrário.”, mexe o arroz usando movimentos leves no pulso, enquanto a comida não engrossa. Mexer é importante, para liberar amido e deixar o arroz cremoso. É divertido ver a mistura heterogênea do arroz branco com o caldo alaranjado. À medida em que o caldo for secando, tem que adicionar mais ao arroz. “Ou você acha que esse caldo fervendo aí do lado é só pra enfeitar?”, ri.

Nunca cozinha sem música. Antes a gente tinha que torcer pra que nosso artista preferido tocasse na rádio e estivéssemos ouvindo… Hoje tem o Spotify. A tecnologia é uma coisa doida, né? A bardo de cabelo roxo e orelhas pontudas canta, conectada pela caixinha azul da JBL. Azul para Pistolinha é a cor da palavra amor, mas ela acredita que seu amor é como um planeta pegando fogo. A superfície deste planeta parece vidro craquelado, devido ao calor, e a luz do fogo é roxa. A cor preferida dela. “O amor que você sente é o mesmo que o amor do outro.”, Potyguara canta. Pistolinha sempre fica em silêncio para ouvir isso. “Mas eu acho mesmo é que ser humano é um bicho estranho que não sabe amar. Ensinam desde cedo que pra amar tem que sofrer. Tá em uma ruma de poesia, né. E se os poetas dizem…”, o arroz está engrossando e é preciso mais força para mexê-lo. Coloca o fogão em fogo médio.

É sempre preciso mais força. “Quando eu decidi me amar acima de tudo, sem precisar do amor e validação de mais ninguém, minha vida mudou porque hoje eu recebo tudo de coração aberto. Entendo melhor que me dão o que podem me dar. E como não há um espaço incompleto em mim, eu não cobro demais, nem me alimento de migalhas. Eu não peço demais, mas o que eu recebo é sempre mais. É sempre uma soma. Então foi o maior presente que eu já dei a mim mesma. Não vou deixar de viver nada, muito pelo contrário… Só que eu agora sou livre. Eu sou como uma história. Uma criatura selvagem, sei lá… Tente enjaular uma criatura selvagem ou a força da natureza, pra tu ver...”, ri. O risotto está quase pronto. Há quem discorde dela. Há quem prefira o arroz mais mole. Há quem a ache uma maluca que mente para si mesma, mas se ela ao menos se importasse… Pistolinha vai viver a vida dela como ela achar que deve e ninguém pode tomar isso dela.

Termina de mexer o arroz, al dente. Desliga o fogo.
Adiciona o parmesão e um pouquinho de provolone “Para dar aquele gostinho de defumado”.
Mexe.
Mistura o camarão.
Mexe mais.
Vê se tá bom de sal.
O sal é sempre o último.
Uma pitada.
PERFEITO!
Espera três minutos para descansar.
O risoto, não ela.
Serve em prato fundo, afinal o “servir” também faz parte do cozinhar.
Com queijo ralado em cima.
Uma pitadinha de orégano, pela estética (pelo sabor também).
Talvez devesse ter colocado só um tantinho de nada de manjericão.
Agora é tarde.
Outra regra entalhada em seu coração: nada de ketchup.
Senta e observa a reação.
É claro que estava delicioso.
É porque foi feito com amor.”, sorri e levanta para fazer seu prato.
Só gosta de comer depois de ver os outros dando a primeira garfada.
Minha saúde vale mais que um beijo.”, Potyguara canta.
E vale mesmo.
Foi gostoso?
Ficasse com fome?
(de amor ou de comida gostosa?)
(oxe, e em certo ponto os dois não acabam sendo a mesma coisa?)

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Sem data para ficar


“Eu costumava achar que...”, pausa a fala para lamber a seda. “Eu achava que era amaldiçoada, sabe?”, falava calma enquanto batia a ponta do cigarro na mesa, “É pra espalhar e deixar mais equilibrado.”, estava mais calma desde que deixou o cigarro. O kumbayá era bom pra esquecer a dependência, e pra ansiedade. Dormia melhor agora. Gosta de ter o cigarro de kumbayá queimando em sua mão. É estético.

Costuma conversar sobre a vida num tom casual, nem nem tirar os olhos do que está fazendo.
“Sei lá, parecia algo de outras vidas. Todo mundo por quem eu já me apaixonei foi embora. Ir embora, que eu digo, é ir para outro lugar, e não acabar comigo e a gente nunca mais se ver.”, diz colocando o cigarro na boca. A chama do isqueiro acende seu rosto. O cheiro de camomila queimada inunda o lugar.

“Não lembro de uma pessoa que tenha ficado.”, não lembra porque não existe. Nunca amou ninguém que fosse ficar. Parecia que quando dizia “Eu te amo”, era como estar dando uma passagem só de ida de presente. Gostava de rir disso, dizendo que, se fosse personagem de uma comédia romântica, o clímax do filme seria que um motorista não a viu gritando na rua de braços abertos e olhando para o céu “EU SOU O QUÊ? A PORRA DE UM AEROPORTO, UMA RODOVIÁRIA DO AMOR, POR CERTO?” e BAM! Atropelada. Acorda no hospital. Só que ao olhar o quarto, não tinha flores. Nem um par romântico preocupado com o estado de saúde dela. Porque, bem… Não havia par romântico. Ele foi embora.

“E tá tudo bem ele ir, é o sonho dele.” e não teria coragem de pedir para dicar. Seria egoísta e injusto. Ela mesma não ficaria. “Mas o que me faz acreditar na maldição é que TODAS as pessoas que eu amei, foram assim. TODAS! Parece que todo amor que me vem tem data de validade. E eu só queria saber como é não saber.” Queria acordar todo dia na incerteza de que aquele é o último. Queria dizer que ama sem saber quando vai ser a última vez que vai dizer isso. Só uma vez gostaria de provar o doce sabor da ignorância.

“Eu às vezes só queria alguém que não sabe quando vai embora, que sequer sabe se vai embora! Alguém que não precise se apressar para se despedir. Claro que isso tem suas vantagens. A minha bênção dentro da maldição é que eu posso amar loucamente porque eu sei que vou ser deixada. Posso ser imprudente e exagerada e está tudo bem. Não preciso ter medo. Mas não consigo evitar, fico me perguntando como seria fazer tudo isso só por fazer e não porque tenho uma data limite. Tem umas magias que só passam com amor verdadeiro, né? Foi isso o que os Contos de Fadas nos ensinaram? Só o amor vai salvar o mundo...”, dá uma risada sarcástica. “Eu gostaria de não sentir isso mas eu sinto inveja de quem não sabe o que vem no dia de amanhã.”, tentou de tudo pra se livrar dessa maldição. De banho de mar ao celibato, passando por sessões de terapia TODA.SEXTA.ÀS.CINCO!!!


Até que desistiu de tudo.
Foi assim que percebeu que odiava saber o seu futuro.
Não pensou em mais nada.
Assim mesmo, num final brusco e inesperado.
Aliás, essa história ainda não tem final.
Até o próximo que vier já sabendo quando vai.



- dez, 2019.