O camarão já estava pronto e reservado num prato.
“Eu
fico estressada quando percebo que tô falando muito de amor.”, ela
diz, cortando a cebola. Está fazendo um risoto. Não aguenta mais
fazer risoto. Por que as pessoas insistem em pedir para que ela
cozinhe esse prato? Não que seu risoto seja ruim, ou que fazê-lo
também o seja, só é algo que já cozinhou tanto que não há mais
desafio, sabe? E sem desafio, Pistolinha não vive. Fica logo
entediada. E há muito cozinhar esse prato já havia se tornado algo
mecânico.
“Eu
fico estressada porque não fui ensinada a estar vulnerável e
confortável com isso, me sinto meio fraca.”, dá uma mexida no
caldo: dois litros de água, uma colherzinha de açafrão e caldo de
camarão. Volta as mãos para ficar a cebola, bem picadinha, para
ninguém reclamar. Em dias em que se sente inspirada a cozinhar, é
sua parte preferida. Nunca chora. Tem gente que acha que é um
superpoder. Na verdade ela só molha a faca antes de cortar cebola. É
só um truque.
“Mas
esses dias eu tava aqui pensando sobre aquele término horrível de
uns anos atrás, tu lembra?”, ela dá uma olhadela para trás, para
se certificar de que está sendo ouvida. “Isso, do celibato que
deveria durar só um ano mas acabou durando dois e meio… Eu tava
relembrando essa história porque me deparei com umas coisas que
talvez eu até já soubesse mas não tinha percebido que sabia…
Sabe como é isso, né?”, parou para jogar metade da cebola que
havia sido picada da tábua para a panela.
Foram
sete lições sobre o amor (sete é um número amigo dela, se quiser
testar, chegue de surpresa e pergunte a ela a tabuada do sete), todas
em forma de “não”. “Talvez tenha sido quando eu lembrei que
amar também é dizer ‘não’.”
1.
Não se pode ajudar quem não quer ajuda;
2.
Não queira que alguém fique se esse alguém não quer ficar;
3.
Não deixe ninguém projetar seus respectivos problemas em você;
4.
Não se salva ninguém, você pode segurar a mão da pessoa para lhe
passar segurança e tornar o caminho menos árduo;
5.
Não faça algo se seu coração não pedir;
6.
Não aceite ser tratada mal, principalmente depois de uma
demonstração de afeto, fuja se preciso for;
7.
Não esqueça que cada um tem seus limites e suas lutas.
Sete
lições que estão gravadas em seu coração, quase tatuadas, como
se fossem mandamentos.
“Mas
acho que a coisa mais importante daquilo tudo foi que eu decidi que
ia me amar tanto que eu não ia precisar do amor de mais ninguém.”,
sobe o cheirinho delicioso de cebola refogada. Tem que mexer até
dourar. “Agora pronto! Tu vem na minha casa, me pede pra te
alimentar e ainda vem me chamar de leviana? É de fudê um
negócio desse!”, adiciona
o arroz à cebola refogada e mexe. Depois bem misturadinho, adiciona
meio copo de vinho branco. É uma delícia o som do vinho tocando a
panela quente. “Venha cagar regra na minha casa não, visse! Você
sabe que aqui, se você pede comida, a história vem necessariamente
junto, então fique na sua e escute!”.
Depois
ficou mais leve. Quando fez as pazes com os “nãos” que havia
recebido e que viria a dar. Dizer um “não” era um tantinho mais
difícil do que receber um, embora não fosse o que aparentava. Mas
com Pistolinha, é sempre assim: nem tudo é o que parece ser e ela
apenas ri das certezas que querem lhe enfiar goela abaixo. Abraçou
suas rejeições, o desconhecido e o amanhã. “Venha o que tiver
que vir.”, é o que costuma dizer. É o seu rezo de virada de ano.
Abraçou as parcelas de amor que querem dar a ela, não por achar que
merece pouco, mas por entender que cada um tem suas limitações,
assim como ela tem as dela. “E é amor, deveria ser leve, sem
cobranças, sem dor… Se dói, não é amor para mim. Aceito o que
quiserem me dar, mas o filtro mínimo é esse. Não me machucar, nem
ser tratada mal. O amor pra mim tem que ser gentil também. Talvez a
gentileza tenha criado o amor, ou o contrário.”, mexe o arroz
usando movimentos leves no pulso, enquanto a comida não engrossa.
Mexer é importante, para liberar amido e deixar o arroz cremoso. É
divertido ver a mistura heterogênea do arroz branco com o caldo
alaranjado. À medida em que o caldo for secando, tem que adicionar
mais ao arroz. “Ou você acha que esse caldo fervendo aí do lado é
só pra enfeitar?”, ri.
Nunca
cozinha sem música. Antes a gente tinha que torcer pra que nosso
artista preferido tocasse na rádio e estivéssemos ouvindo… Hoje
tem o Spotify. A tecnologia é uma coisa doida, né? A bardo de
cabelo roxo e orelhas pontudas canta, conectada pela caixinha azul da
JBL. Azul para Pistolinha é a cor da palavra amor, mas ela acredita
que seu amor é como um planeta pegando fogo. A superfície deste
planeta parece vidro craquelado, devido ao calor, e a luz do fogo é
roxa. A cor preferida dela. “O amor que você sente é o mesmo que
o amor do outro.”, Potyguara canta. Pistolinha sempre fica em
silêncio para ouvir isso. “Mas eu acho mesmo é que ser humano é
um bicho estranho que não sabe amar. Ensinam desde cedo que pra amar
tem que sofrer. Tá em uma ruma de poesia, né. E se os poetas
dizem…”, o arroz está engrossando e é preciso mais força para
mexê-lo. Coloca o fogão em fogo médio.
É
sempre preciso mais força. “Quando eu decidi me amar acima de
tudo, sem precisar do amor e validação de mais ninguém, minha vida
mudou porque hoje eu recebo tudo de coração aberto. Entendo melhor
que me dão o que podem me dar. E como não há um espaço incompleto
em mim, eu não cobro demais, nem me alimento de migalhas. Eu não
peço demais, mas o que eu recebo é sempre mais. É sempre uma soma.
Então foi o maior presente que eu já dei a mim mesma. Não vou
deixar de viver nada, muito pelo contrário… Só que eu agora sou
livre. Eu sou como uma história. Uma criatura selvagem, sei lá…
Tente enjaular uma criatura selvagem ou a força da natureza, pra tu
ver...”, ri. O risotto está quase pronto. Há quem discorde dela.
Há quem prefira o arroz mais mole. Há quem a ache uma maluca que
mente para si mesma, mas se ela ao menos se importasse… Pistolinha
vai viver a vida dela como ela achar que deve e ninguém pode tomar
isso dela.
Termina
de mexer o arroz, al dente. Desliga o fogo.
Adiciona
o parmesão e um pouquinho de provolone “Para dar aquele gostinho
de defumado”.
Mexe.
Mistura
o camarão.
Mexe
mais.
Vê
se tá bom de sal.
O
sal é sempre o último.
Uma
pitada.
PERFEITO!
Espera
três minutos para descansar.
O
risoto, não ela.
Serve
em prato fundo, afinal o “servir” também faz parte do cozinhar.
Com
queijo ralado em cima.
Uma
pitadinha de orégano, pela estética (pelo sabor também).
Talvez
devesse ter colocado só um tantinho de nada de manjericão.
Agora
é tarde.
Outra
regra entalhada em seu coração: nada de ketchup.
Senta
e observa a reação.
É
claro que estava delicioso.
“É
porque foi feito com amor.”, sorri e levanta para fazer seu prato.
Só
gosta de comer depois de ver os outros dando a primeira garfada.
“Minha
saúde vale mais que um beijo.”, Potyguara canta.
E
vale mesmo.
Foi
gostoso?
Ficasse
com fome?
(de
amor ou de comida gostosa?)
(oxe,
e em certo ponto os dois não acabam sendo a mesma coisa?)