domingo, 27 de abril de 2014

Nada

Uma manhã chuvosa, o céu nublado... Uma felicidade natural, um bom humor causado pelo tempo fechado, uma satisfação derivada de um contraste. A manhã estava boa demais para sair de casa e me aborrecer com os imprevistos do dia-a-dia. Desmarquei todos os meus compromissos, e não me dei ao trabalho de trocar de roupa: fiquei de pijama, enrolada num edredom. Uma xícara de chá e, para completar o cenário, uma máquina de escrever me encarando, sua página em branco esperando para ser escrita.

Qual seria meu tema dessa vez? Um romance? Uma comédia? Uma breve história de suspense, talvez? A melhor coisa era saber que uma faísca de ideia poderia levar a um universo totalmente novo. Ou a uma história que já foi contada muitas vezes... Uma história tão usada que, se fosse uma imagem, seria um chinelo tão gasto que já está com buracos. Ou aquele livro tão velho e tão surrado, com páginas amareladas pelo tempo e folhas amassadas por uma chuva qualquer. Ou uma fotografia de um casal, amassada e jogada no lixo num momento de raiva, mas retirada de lá, no momento da reconciliação.

No final, algumas histórias são releituras de outras, contadas com outras palavras, mas sob a visão de outra pessoa. Como pessoas trocando de roupas: a essência é a mesma, cheias de sentimentos, sofrimentos e alegrias, impressões boas e impressões más, só o exterior que acaba sendo diferente, os corpos e as roupas.

Deixei que meus dedos corressem pelas teclas, meio prestando atenção ao que escrevia, mas ao mesmo tempo pensando nas próximas palavras que deveriam vir. Sempre que sento para escrever, é como uma grande aventura, começo sempre com uma folha em branco e uma máquina de escrever, mas nunca sei onde vou terminar.

O telefone tocou, não dei importância. Continuei a escrever.
Escrevi até meus dedos doerem.
Escrevi até perder o fôlego por prender a respiração, no frenesi de escrever alguma cena importante.
Escrevi até o papel acabar.

Escrevi sobre uma menina que acordou um dia, com uma epifania de vida e decidiu seguir seus sonhos. Fiz uma bolinha de papel e a atirei no lixo perto de mim.
Escrevi sobre vampiros, lobisomens, extraterrestres, sobre seres incríveis que habitavam um mundo desconhecido, totalmente novo e único, onde tigres tocavam violoncelo e peixes usavam roupas retrô de mergulho.
Joguei tudo no lixo.
Nada prestou, nada me interessou.

Tentei um serial killer, um canibal e um ladrão de banco.
Todos no lixo.
Tentei deuses gregos, romanos e nórdicos.
Também foram parar no lixo.
Nada prestou, nada me interessou.

Acabei por me desconcentrar e andei pela casa.
Em certo momento do dia, quando não se está fazendo nada, você começa a esperar que algo aconteça, algo que tire do tédio, ou algo que te dê inspiração para criar alguma coisa nova e interessante.
Esperei pelo correio e fui ler minhas cartas. Só recebi contas... Ninguém mais manda cartas hoje em dia.
Esperei por alguma surpresa... Flores, talvez. Mas as flores não foram enviadas para mim. Se foram, ficaram perdidas juntamente com o entregador, que não sabia meu endereço.
Esperei por paciência, e por vontade de fazer alguma coisa, mas eu não conseguia parar mais de um minuto e fazer uma coisa só.
Nada.

O dia se passou desse jeito, sem produtividade alguma.
Foi quando percebi que minha folha deveria ser preenchida com uma pequena reclamação...
Um lembrete, para colocar na porta da geladeira, num quadro, para transformar meu lembrete em arte, ou para tirar uma foto e usar como wallpaper do celular:

“Todos os dias, tudo pode acontecer... Inclusive nada.”



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PS: Meus mais sinceros agradecimentos ao amigo Lucas Medeiros, que permitiu que eu usasse um dos       desenhos dele para ilustrar um dos meus textos!                                                                                         

PPS: Atendendo a pedidos, o "Na falta de uma ideia melhor" agora tem uma página no FB, então quem ainda não curtiu e se interessar, por favor, be my guest! https://www.facebook.com/nafaltadeumaideiamelhor

domingo, 13 de abril de 2014

Raízes Aéreas

Nunca fui do tipo de pessoa que cria raízes.
Algumas pessoas acham isso estranho,
Isso de querer morar em lugares diferentes,
Cidades diferentes,
Respirar novos ares,
De ficar empolgada ao pensar em aprender uma nova língua.

Não gosto de mesmice,
De saber que ficaria presa ao mesmo lugar minha vida inteira...
Não quero uma âncora, quero asas.
Quero poder ir onde eu quiser, quando eu quiser...
É só decidir que quero ir.

“Pra quê criar raízes quando posso sair descobrindo o mundo?”, digo eu.
Não preciso de um lugar para chamar de “lar”.
Não preciso de um lugar para onde voltar.
Só preciso de lugares onde chegar.
Não é caso de não ter um porto seguro,
É caso de viver aventuras.
É isso de acordar e não saber exatamente para onde se está indo.
Mas é a certeza de voltar com ótimas memórias.
A certeza de acordar já apaixonada pelo lugar,
E ir dormir mais apaixonada ainda.
Preciso é de conhecer lugares novos,
Conhecer gente nova.

Me perder nos encantos de uma cidade que acabei de conhecer,
Me encontrar em cada obra de arte pendurada nas paredes de museus.
Experimentar a culinária típica de cada lugar,
Aprender a falar a língua local,
As gírias, usar os termos errados.
Acabar por beijar um estranho, talvez... Quem sabe?

Aprender sobre a cultura, sobre os costumes locais.
Sobre as crenças das pessoas.
Respirar um ar rarefeito,
Ou respirar um ar tão limpo que você acaba intoxicado,
Por ter se acostumado ao ar poluído da cidade anterior.
Tomar banho nas águas doces de um rio,
Talvez até arriscar um banho de chuva,
Quem se importa com um possível resfriado?

Jogar uma moeda numa fonte,
E desejar que eu sempre possa fazer isso.
Conhecer novos lugares.
Nunca criar raízes.

Às vezes acho que eu até tenho raízes.
Gosto de imaginar minhas raízes saindo do centro da Terra.
E alcançando todos os lugares possíveis.
Tenho raízes em todos os lugares onde já fui.
Todos os lugares que já deixaram uma marca em mim.
Que me deixaram com boas lembranças.

No final das contas, talvez se as árvores pudessem falar,
Elas diriam que gostariam de não ter raízes.
Para poder ir onde elas quiserem.
No final das contas, não ter raízes não é uma coisa ruim.

E acho que, se as pessoas vissem o mundo como eu vejo,
Toda essa diversidade de cores e odores que, de volta,
Causam toda a sorte de sentimentos possíveis.
Talvez se eu pudesse emprestar meus olhos e coração por um dia,
Talvez as pessoas entendessem como é bom não criar raízes.
E aí, talvez ninguém quisesse criar raízes.
E quisessem viver mais aventuras.
Ou talvez, ter raízes como as minhas...


Um certo tipo meio diferente de raízes aéreas.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

O palhaço

Um dia desses lembrei da primeira história que eu escrevi. Ou, ao menos, a primeira história que eu lembro ter escrito. Quis saber por onde andava aquele livrinho que recebi na minha formatura da alfabetização, contendo a minha história e de todos os meus colegas, queria relembrar, e ver o que eu escrevi.

Eis que esta semana, num jantar familiar, meu pai me pergunta: “O que você acha que deviam jogar em palhaços no circo? Tomates ou ovos?”, antes que eu pudesse pensar numa resposta, minha mãe comenta: “Não pergunte isso a ela, porque você não quer saber a resposta.”, finalmente respondi rindo: “Tiros. Ou facas. Mas de onde você tirou isso?”, ele apenas me respondeu com um risinho de criança que acabou de fazer travessura e um singelo “Isso não te lembra de nada, não?”
 
Foi com esse comentário que tive um estalo. Minha primeira história! A história foi sobre um palhaço, mas ao contrário do que todos pensam, eu não fui muito boazinha com o palhaço. Eis a história:

“Era uma vez um palhaço maluco que tirou a    roupa e os meninos que estavam assistindo começaram a vaiar.
O palhaço deu alguma coisa para o elefante, tirou uma pomba do sapato e dois coelhos da cartola.
 No final, os meninos jogaram tomate.”

Pois é, desse jeitinho, copiado na íntegra. Com uma letra enorme e o desenho de um palhaço que mais parece um jarro ambulante com elefantíase. A verdade é que odeio palhaços. Aliás, não odeio palhaços, mas prefiro que eles fiquem bem longe de mim. Se eu pudesse, entraria com uma ação de pedido de ordem de restrição para todos os palhaços do mundo.

Não me orgulho da narrativa, a história escrita em 1998 carece de detalhes. Se me perguntassem naquela época se achava que ia continuar objetiva desse jeito, eu provavelmente nem entenderia a pergunta. Mas se entendesse, eu responderia “Sim.”. Pronto. Uma palavra. Monossilábica. Falando pouco mesmo, apesar de dizerem que eu era uma criança tagarela e queria saber o motivo de tudo.

Mas anos se passaram, e a vida me tornou uma pessoa mais detalhista. Se hoje eu fosse escrever uma história sobre um palhaço, provavelmente começaria de um modo mais pomposo, talvez algo como “Era uma vez um palhaço com transtornos psicológicos que tirou a roupa...”, mas a verdade é que o palhaço não tirou a roupa. Ele não ficou nu em momento algum, ele apenas trocou de roupa. Foi apenas um mal entendido causado pelo mal uso das palavras, e de uma inocência infantil.

“E como você sabe disso?”, me perguntam. Eu respondo: eu lembro desse dia. Lembro do dia quando escrevi isso... Não posso dizer que lembro totalmente, mas lembro de detalhes... Lembro das carteiras azuis, agrupadas de seis em seis, as meninas de um lado, os meninos do outro. Lembro do alfabeto escrito acima do quadro negro, e das plantas perto das janelas. Das paredes brancas, com algumas cartolinas coloridas, trabalhos da nossa turminha da alfabetização. Lembro dos cabelos encaracolados de uma das “tias”, das caixas de madeira com giz de cera. Lembro do sabor do misto quente com suco de laranja que eu levava sempre para comer na hora do lanche. Dizem que sou boa com lembranças.

Lembro do “tanquinho de areia”, onde brincávamos com baldes, como se estivéssemos na praia. Do “Banho livre” da natação no final do dia de todas as terças e quintas, minha parte preferida do dia. Das idas à biblioteca para ler as histórias da Bruxa Onilda. Lembro e sinto saudades.
Mas desse dia, minhas memórias são como se eu estivesse olhando para uma ilha distante com binóculos, como uma foto com as pontas gastas pelo tempo. Como quando tomamos banhos quentes, e o espelho fica embaçado, então passamos a mão nele, formando um círculo para que possamos ver algo, e deixamos as extremidades embaçadas mesmo.

Lembro que nos deram papéis com quatro cenas, para escrevermos o que entendemos... Então, na verdade, o palhaço não tirou a roupa, ele apenas trocou de roupa. A “alguma coisa” que ele deu para o elefante provavelmente foi água. Ou ração. Lembro que era um potinho, então não dava para distinguir bem. Mas as partes da pomba saindo de um sapato, dos coelhos sendo retirados da cartola e dos tomates sendo jogados foram verdade. Eu juro.

Ou talvez eu tenha inventado esta parte dos tomates porque eu realmente nunca gostei de palhaços. Poderia ter feito um palhaço mais estranho, é verdade... Além de maluco, “estranho”, um “elemento suspeito”, tê-lo feito dar “alguma substância ilícita para o elefante, que começou a fazer acrobacias em cima de uma bola, segurando um guarda chuva”, para enfeitar a história...

Mas meus pais e avós ficaram tão orgulhosos de mim! E eu sempre tive esse problema, de ficar feliz quando vejo as pessoas que amo com orgulho de mim. Acho que consigo até imaginar minha cara de felicidade, e meu sorriso de dentinhos de leite.

É bem verdade que depois disso, passei anos para voltar a escrever... Claro, escrevia as redações da escola, mas elas eram tanto quanto “um parto”, como diria uma amada professora. Em 2008, no entanto, com algum estímulo de amigos e um certo professor de literatura, voltei a escrever. Escrevi coisas boas, e coisas não tão boas... Das quais me envergonho e preferia não ter mostrado a ninguém. Mas hoje, escrever se tornou não só um hábito, ou um hobby, mas uma necessidade... É meu modo de “esfriar a cabeça”, de esquecer frustrações e estresses, ou meu modo de mostrar algo legal que aconteceu comigo. Sou motivada por sentimentos de amor e felicidade, mas também posso ser motivada para esquecer coisas não tão boas... “Penso, logo existo”, passou a ser “Escrevo, logo existo”, e eu nem percebi.

Porém, tudo começou com essa história, a história do meu palhaço maluco. E apesar de eu não gostar de palhaços, esta história me deixa feliz, me enche de sentimentos bons... Parece que tudo isso aconteceu há 500 anos... Parece outra vida! Mas não é... É apenas uma parte de mim, uma pequena parte de mim, que nunca cresceu, como Peter Pan. Apesar de ser uma história de três frases apenas, três singelas e simples frases, não é preciso ser um gênio para entendê-las... Mas é uma história que me traz lembranças, lembranças de um tempo que não passo muito tempo recordando por causa da correria do cotidiano, um tempo quando minha única preocupação era não ficar muito suja de terra, para minha mãe não reclamar comigo.


Um tempo quando essa preocupação de não ficar suja de terra era completamente ignorada. Um tempo quando eu corria por diversão, e não por obrigação, para me manter saudável. Um tempo quando eu não tinha medo de subir em árvores. Um tempo de apostas de quem conseguia balançar mais alto. Um tempo de uma criança inconsequente e aventureira, que nunca parava para considerar se ia acabar quebrando alguma coisa ou não. Um tempo do qual sinto saudades. Um tempo que guardo num cantinho escondido no meu coração, um cantinho iluminado por desenhos de flores e solzinhos com rostos... Um cantinho que me faz querer voltar no tempo e permanecer por lá, porque ser criança é a melhor coisa que existe.