quinta-feira, 10 de abril de 2014

O palhaço

Um dia desses lembrei da primeira história que eu escrevi. Ou, ao menos, a primeira história que eu lembro ter escrito. Quis saber por onde andava aquele livrinho que recebi na minha formatura da alfabetização, contendo a minha história e de todos os meus colegas, queria relembrar, e ver o que eu escrevi.

Eis que esta semana, num jantar familiar, meu pai me pergunta: “O que você acha que deviam jogar em palhaços no circo? Tomates ou ovos?”, antes que eu pudesse pensar numa resposta, minha mãe comenta: “Não pergunte isso a ela, porque você não quer saber a resposta.”, finalmente respondi rindo: “Tiros. Ou facas. Mas de onde você tirou isso?”, ele apenas me respondeu com um risinho de criança que acabou de fazer travessura e um singelo “Isso não te lembra de nada, não?”
 
Foi com esse comentário que tive um estalo. Minha primeira história! A história foi sobre um palhaço, mas ao contrário do que todos pensam, eu não fui muito boazinha com o palhaço. Eis a história:

“Era uma vez um palhaço maluco que tirou a    roupa e os meninos que estavam assistindo começaram a vaiar.
O palhaço deu alguma coisa para o elefante, tirou uma pomba do sapato e dois coelhos da cartola.
 No final, os meninos jogaram tomate.”

Pois é, desse jeitinho, copiado na íntegra. Com uma letra enorme e o desenho de um palhaço que mais parece um jarro ambulante com elefantíase. A verdade é que odeio palhaços. Aliás, não odeio palhaços, mas prefiro que eles fiquem bem longe de mim. Se eu pudesse, entraria com uma ação de pedido de ordem de restrição para todos os palhaços do mundo.

Não me orgulho da narrativa, a história escrita em 1998 carece de detalhes. Se me perguntassem naquela época se achava que ia continuar objetiva desse jeito, eu provavelmente nem entenderia a pergunta. Mas se entendesse, eu responderia “Sim.”. Pronto. Uma palavra. Monossilábica. Falando pouco mesmo, apesar de dizerem que eu era uma criança tagarela e queria saber o motivo de tudo.

Mas anos se passaram, e a vida me tornou uma pessoa mais detalhista. Se hoje eu fosse escrever uma história sobre um palhaço, provavelmente começaria de um modo mais pomposo, talvez algo como “Era uma vez um palhaço com transtornos psicológicos que tirou a roupa...”, mas a verdade é que o palhaço não tirou a roupa. Ele não ficou nu em momento algum, ele apenas trocou de roupa. Foi apenas um mal entendido causado pelo mal uso das palavras, e de uma inocência infantil.

“E como você sabe disso?”, me perguntam. Eu respondo: eu lembro desse dia. Lembro do dia quando escrevi isso... Não posso dizer que lembro totalmente, mas lembro de detalhes... Lembro das carteiras azuis, agrupadas de seis em seis, as meninas de um lado, os meninos do outro. Lembro do alfabeto escrito acima do quadro negro, e das plantas perto das janelas. Das paredes brancas, com algumas cartolinas coloridas, trabalhos da nossa turminha da alfabetização. Lembro dos cabelos encaracolados de uma das “tias”, das caixas de madeira com giz de cera. Lembro do sabor do misto quente com suco de laranja que eu levava sempre para comer na hora do lanche. Dizem que sou boa com lembranças.

Lembro do “tanquinho de areia”, onde brincávamos com baldes, como se estivéssemos na praia. Do “Banho livre” da natação no final do dia de todas as terças e quintas, minha parte preferida do dia. Das idas à biblioteca para ler as histórias da Bruxa Onilda. Lembro e sinto saudades.
Mas desse dia, minhas memórias são como se eu estivesse olhando para uma ilha distante com binóculos, como uma foto com as pontas gastas pelo tempo. Como quando tomamos banhos quentes, e o espelho fica embaçado, então passamos a mão nele, formando um círculo para que possamos ver algo, e deixamos as extremidades embaçadas mesmo.

Lembro que nos deram papéis com quatro cenas, para escrevermos o que entendemos... Então, na verdade, o palhaço não tirou a roupa, ele apenas trocou de roupa. A “alguma coisa” que ele deu para o elefante provavelmente foi água. Ou ração. Lembro que era um potinho, então não dava para distinguir bem. Mas as partes da pomba saindo de um sapato, dos coelhos sendo retirados da cartola e dos tomates sendo jogados foram verdade. Eu juro.

Ou talvez eu tenha inventado esta parte dos tomates porque eu realmente nunca gostei de palhaços. Poderia ter feito um palhaço mais estranho, é verdade... Além de maluco, “estranho”, um “elemento suspeito”, tê-lo feito dar “alguma substância ilícita para o elefante, que começou a fazer acrobacias em cima de uma bola, segurando um guarda chuva”, para enfeitar a história...

Mas meus pais e avós ficaram tão orgulhosos de mim! E eu sempre tive esse problema, de ficar feliz quando vejo as pessoas que amo com orgulho de mim. Acho que consigo até imaginar minha cara de felicidade, e meu sorriso de dentinhos de leite.

É bem verdade que depois disso, passei anos para voltar a escrever... Claro, escrevia as redações da escola, mas elas eram tanto quanto “um parto”, como diria uma amada professora. Em 2008, no entanto, com algum estímulo de amigos e um certo professor de literatura, voltei a escrever. Escrevi coisas boas, e coisas não tão boas... Das quais me envergonho e preferia não ter mostrado a ninguém. Mas hoje, escrever se tornou não só um hábito, ou um hobby, mas uma necessidade... É meu modo de “esfriar a cabeça”, de esquecer frustrações e estresses, ou meu modo de mostrar algo legal que aconteceu comigo. Sou motivada por sentimentos de amor e felicidade, mas também posso ser motivada para esquecer coisas não tão boas... “Penso, logo existo”, passou a ser “Escrevo, logo existo”, e eu nem percebi.

Porém, tudo começou com essa história, a história do meu palhaço maluco. E apesar de eu não gostar de palhaços, esta história me deixa feliz, me enche de sentimentos bons... Parece que tudo isso aconteceu há 500 anos... Parece outra vida! Mas não é... É apenas uma parte de mim, uma pequena parte de mim, que nunca cresceu, como Peter Pan. Apesar de ser uma história de três frases apenas, três singelas e simples frases, não é preciso ser um gênio para entendê-las... Mas é uma história que me traz lembranças, lembranças de um tempo que não passo muito tempo recordando por causa da correria do cotidiano, um tempo quando minha única preocupação era não ficar muito suja de terra, para minha mãe não reclamar comigo.


Um tempo quando essa preocupação de não ficar suja de terra era completamente ignorada. Um tempo quando eu corria por diversão, e não por obrigação, para me manter saudável. Um tempo quando eu não tinha medo de subir em árvores. Um tempo de apostas de quem conseguia balançar mais alto. Um tempo de uma criança inconsequente e aventureira, que nunca parava para considerar se ia acabar quebrando alguma coisa ou não. Um tempo do qual sinto saudades. Um tempo que guardo num cantinho escondido no meu coração, um cantinho iluminado por desenhos de flores e solzinhos com rostos... Um cantinho que me faz querer voltar no tempo e permanecer por lá, porque ser criança é a melhor coisa que existe.