Um dia desses lembrei da primeira história que eu escrevi.
Ou, ao menos, a primeira história que eu lembro ter escrito. Quis saber por
onde andava aquele livrinho que recebi na minha formatura da alfabetização,
contendo a minha história e de todos os meus colegas, queria relembrar, e ver o
que eu escrevi.
Eis que esta semana, num jantar familiar, meu pai me
pergunta: “O que você acha que deviam jogar em palhaços no circo? Tomates ou
ovos?”, antes que eu pudesse pensar numa resposta, minha mãe comenta: “Não
pergunte isso a ela, porque você não quer saber a resposta.”, finalmente
respondi rindo: “Tiros. Ou facas. Mas de onde você tirou isso?”, ele apenas me
respondeu com um risinho de criança que acabou de fazer travessura e um singelo
“Isso não te lembra de nada, não?”
Foi com esse comentário que tive um estalo. Minha primeira história! A história foi
sobre um palhaço, mas ao contrário do que todos pensam, eu não fui muito
boazinha com o palhaço. Eis a história:
“Era uma vez um palhaço maluco que tirou a roupa e os meninos que
estavam assistindo começaram a vaiar.
O palhaço deu
alguma coisa para o elefante, tirou uma pomba do sapato e dois coelhos da
cartola.
No final, os
meninos jogaram tomate.”
Pois é, desse jeitinho, copiado na íntegra. Com uma letra
enorme e o desenho de um palhaço que mais parece um jarro ambulante com
elefantíase. A verdade é que odeio palhaços. Aliás, não odeio palhaços, mas prefiro que eles fiquem bem longe de mim. Se eu pudesse, entraria com uma ação de pedido de
ordem de restrição para todos os palhaços do mundo.
Não me orgulho da narrativa, a história escrita em 1998
carece de detalhes. Se me perguntassem naquela época se achava que ia continuar
objetiva desse jeito, eu provavelmente nem entenderia a pergunta. Mas se
entendesse, eu responderia “Sim.”. Pronto. Uma palavra. Monossilábica. Falando
pouco mesmo, apesar de dizerem que eu era uma criança tagarela e queria saber o
motivo de tudo.
Mas anos se passaram, e a vida me tornou uma pessoa mais
detalhista. Se hoje eu fosse escrever uma história sobre um palhaço, provavelmente
começaria de um modo mais pomposo, talvez algo como “Era uma vez um palhaço com
transtornos psicológicos que tirou a roupa...”, mas a verdade é que o palhaço
não tirou a roupa. Ele não ficou nu em momento algum, ele apenas trocou de roupa. Foi apenas um mal
entendido causado pelo mal uso das palavras, e de uma inocência infantil.
“E como você sabe disso?”, me perguntam. Eu respondo: eu
lembro desse dia. Lembro do dia quando escrevi isso... Não posso dizer que
lembro totalmente, mas lembro de detalhes... Lembro das carteiras azuis,
agrupadas de seis em seis, as meninas de um lado, os meninos do outro. Lembro
do alfabeto escrito acima do quadro negro, e das plantas perto das janelas. Das
paredes brancas, com algumas cartolinas coloridas, trabalhos da nossa turminha
da alfabetização. Lembro dos cabelos encaracolados de uma das “tias”, das
caixas de madeira com giz de cera. Lembro do sabor do misto quente com suco de
laranja que eu levava sempre para comer na hora do lanche. Dizem que sou boa
com lembranças.
Lembro do “tanquinho de areia”, onde brincávamos com baldes,
como se estivéssemos na praia. Do “Banho livre” da natação no final do dia de
todas as terças e quintas, minha parte preferida do dia. Das idas à biblioteca
para ler as histórias da Bruxa Onilda. Lembro e sinto saudades.
Mas desse dia, minhas memórias são como se eu estivesse
olhando para uma ilha distante com binóculos, como uma foto com as pontas
gastas pelo tempo. Como quando tomamos banhos quentes, e o espelho fica
embaçado, então passamos a mão nele, formando um círculo para que possamos ver
algo, e deixamos as extremidades embaçadas mesmo.
Lembro que nos deram papéis com quatro cenas, para
escrevermos o que entendemos... Então, na verdade, o palhaço não tirou a roupa,
ele apenas trocou de roupa. A “alguma
coisa” que ele deu para o elefante provavelmente foi água. Ou ração. Lembro que
era um potinho, então não dava para distinguir bem. Mas as partes da pomba
saindo de um sapato, dos coelhos sendo retirados da cartola e dos tomates sendo
jogados foram verdade. Eu juro.
Ou talvez eu tenha inventado esta parte dos tomates porque
eu realmente nunca gostei de palhaços. Poderia ter feito um palhaço mais
estranho, é verdade... Além de maluco, “estranho”, um “elemento suspeito”,
tê-lo feito dar “alguma substância ilícita para o elefante, que começou a fazer
acrobacias em cima de uma bola, segurando um guarda chuva”, para enfeitar a
história...
Mas meus pais e avós ficaram tão orgulhosos de mim! E eu
sempre tive esse problema, de ficar feliz quando vejo as pessoas que amo com
orgulho de mim. Acho que consigo até imaginar minha cara de felicidade, e meu
sorriso de dentinhos de leite.
É bem verdade que depois disso, passei anos para voltar a
escrever... Claro, escrevia as redações da escola, mas elas eram tanto quanto
“um parto”, como diria uma amada professora. Em 2008, no entanto, com algum
estímulo de amigos e um certo professor de literatura, voltei a escrever.
Escrevi coisas boas, e coisas não tão boas... Das quais me envergonho e
preferia não ter mostrado a ninguém. Mas hoje, escrever se tornou não só um
hábito, ou um hobby, mas uma necessidade... É meu modo de “esfriar a cabeça”,
de esquecer frustrações e estresses, ou meu modo de mostrar algo legal que
aconteceu comigo. Sou motivada por sentimentos de amor e felicidade, mas também
posso ser motivada para esquecer coisas não tão boas... “Penso, logo existo”,
passou a ser “Escrevo, logo existo”, e eu nem percebi.
Porém, tudo começou com essa história, a história do meu
palhaço maluco. E apesar de eu não gostar de palhaços, esta história me deixa
feliz, me enche de sentimentos bons... Parece que tudo isso aconteceu há 500
anos... Parece outra vida! Mas não é... É apenas uma parte de mim, uma pequena
parte de mim, que nunca cresceu, como Peter Pan. Apesar de ser uma história de
três frases apenas, três singelas e simples frases, não é preciso ser um gênio
para entendê-las... Mas é uma história que me traz lembranças, lembranças de um
tempo que não passo muito tempo recordando por causa da correria do cotidiano,
um tempo quando minha única preocupação era não ficar muito suja de terra, para
minha mãe não reclamar comigo.
Um tempo quando essa preocupação de não ficar suja de terra
era completamente ignorada. Um tempo quando eu corria por diversão, e não por
obrigação, para me manter saudável. Um tempo quando eu não tinha medo de subir
em árvores. Um tempo de apostas de quem conseguia balançar mais alto. Um tempo
de uma criança inconsequente e aventureira, que nunca parava para considerar se
ia acabar quebrando alguma coisa ou não. Um tempo do qual sinto saudades. Um
tempo que guardo num cantinho escondido no meu coração, um cantinho iluminado
por desenhos de flores e solzinhos com rostos... Um cantinho que me faz querer
voltar no tempo e permanecer por lá, porque ser criança é a melhor coisa que
existe.