Às vezes até as pessoas mais felizes ficam tristes.
E às vezes até as pessoas mais autossuficientes precisam de alguém. Amélia
sempre carrega um sorriso no rosto, uma palavra de conforto e um abraço
apertado para quem queira ou precise. Sempre tem um elogio pronto, algo
como: "Seus olhos são bonitos.”, ou “Seu sorriso é lindo!”, acompanhado
de uma risadinha, ou um tom sério demais para que duvidem de suas palavras. Tentava mostrar aos
outros que sempre há algo bonito neles, por mais que não se veja. Nunca foi de
precisar dos outros, era suficiente por si só, sabia como se cuidar sozinha. Na
verdade, sabia se cuidar tão bem, que cuidava não só de si, mas também, dos
outros. No entanto, às vezes quem cuida dos outros esquece um pouco de cuidar
de si. Esquece de cuidar de si, se dedica demais ao outro, e o efeito dominó é evidente: sente-se abandonada, como se não fosse importante para ninguém. Melancólica.
Amélia sempre tentou ser para os outros o que
esperava que fossem para si. Levava a sério alguns posts que via nas redes
sociais, dizendo que devemos ser a mudança que queremos ver no mundo. Devemos,
em nossos relacionamentos, sermos as pessoas com quem queremos nos relacionar,
sejam estes afetivos ou não. Amizades, namoros, casos... Sejam quem você quer
que sejam com você, evita decepção. Não crie expectativas. Não espere do outro
o que o outro não pode dar. Tente se projetar no outro. Tente perceber o que
você recebe em troca, porque às vezes a gente recebe, sim, carinho e afeto, mas
não da maneira que a gente espera. Não jogue. As regras são inúmeras, às vezes
a gente nem consegue lembrar direito.
Uma vez perguntaram como conseguia fazer tantas
surpresas com sucesso, como sempre conseguia dar os melhores presentes, como
conseguia fazer todos se sentirem tão bem quando ela está por perto. “Ah, eu só
faço pelas outras pessoas o que eu gostaria que fizessem para mim.”, apesar de
nunca ter gostado de surpresas. Um dia, refletindo o porquê de não gostar de
surpresas, parou para perceber que não é algo que acontece muito em sua vida.
Portanto, não saberia como se comportar caso alguém fizesse por ela o que faz
pelos outros. Seria arremessada para longe de sua zona de conforto, e nada de
bom poderia vir de um mundo fora de sua zona de conforto.
Mas isso não vem ao caso agora. O importante é que
se esforçava para fazer qualquer pessoa feliz sem pedir nada em troco. Sabia
muito bem que ninguém é obrigado a fazer por ela o que ela faz com tanta
dedicação. Fazia porque queria, e isso é óbvio para qualquer pessoa. Talvez
pensasse que deve mostrar às pessoas como elas são importantes e especiais
porque ninguém sabe quando foi a última vez que alguém ouviu um elogio, algo bonito. Talvez porque não se sabe quando é a última vez que vai se ver
alguém. Ou talvez fosse tomada por um sentimento egoísta de tirar satisfação no
brilho no olhar do outro, quem sabe? Egoisticamente altruísta. Esperava nada de
ninguém. Esperava, apenas, que visse o brilho no olhar do outro, não olhar de gratidão, mas pela epifania repentina de que se é uma pessoa especial. E é
importante. Se deleitava em ver o outro sentir que é especial. Nada além disso, nem mesmo um “obrigado”.
Mas até as pessoas felizes ficam tristes, e até as
pessoas mais autossuficientes precisam de alguém. Até quem cuida de todo mundo,
de vez em quando, precisa de alguém de quem cuidar. Até quem faz os outros se
sentirem importantes precisa se sentir assim. E então, em certas manhãs
ensolaradas demais, quentes demais, Amélia acordava com um sentimento ruim. Era
aquela vozinha que passa boa parte de nossas vidas em silêncio, mas quando
resolve falar, fica no fundo do pensamento, te fazendo criar e procriar
paranóias. Algo que te diz que você não é importante na vida dos outros. Esse é
o problema de ser quem você quer e espera que sejam: sua única decepção é que
você não vai encontrar uma pessoa como você. Não vai encontrar alguém que te
faça sentir tão importante quanto você merece sentir que é.
Em certas manhãs, tudo o que Amélia quer é sentir
que é importante.
Em certas manhãs não adiantava lembrar das frases
preferidas de uma série que amava: “Em 900 anos de tempo e espaço, nunca
conheci alguém que não fosse importante.”. Em certas manhãs, em raras manhãs,
desejava que fizessem por ela o que ela faz pelo outro. Em certas raras manhãs,
sonhava que alguém dissesse o quanto ela é importante. Em certas raras manhãs,
precisava de motivos. Em certas raras manhãs, queria ser amiga dela mesma. Mas poderia, não? Amélia poderia ser amiga de
si mesma! Começou a escrever cartas e poemas para si, dizia o quanto é
importante e o quanto a faz feliz. Agradece por estar sempre lá para ela, por
sempre fazer o melhor para que se sentisse bem. Mas em certas raras manhãs, ser
amada por si mesma não é o suficiente.
Em certas raras manhãs gostaria de ser
amada pelos outros. Em certas raras manhãs gostaria de ouvir das outras pessoas
como ela as faz sentir. Em certas raras manhãs, gostaria que lhe dessem um
motivo apenas, qualquer um, pelo qual ela devia achar que é importante na vida
de alguém. Em certas raras manhãs queria não parecer tão pequena, tão insignificante,
tão desprezível, tão... Dispensável. Em certas raras manhãs precisava que
cuidassem dela. Em certas raras manhãs gostaria de não sentir. Em certas raras
manhãs quem cuidava de todos gostaria de ser cuidada. Em certas raras manhãs,
Amélia acordava carente.
Carente. Almeja o sentimento que causa nos outros.
Em certas raras manhãs, queria que percebessem. Queria que sentissem. Em certas raras manhãs amor próprio não é
suficiente para preencher o vazio existencial que surge. Esse vazio que vem e
vai com a mesma velocidade. Ninguém sabe como nasce, ninguém sabe quando
cresce... O faz em silêncio, rastejando e, quando Amélia menos percebe, ele
está lá, pronto para engolir todo o seu ser. Em certas raras manhãs, o dia já
começa ruim sem um motivo específico. Em certas raras manhãs, Amélia acorda
triste sem nem saber o porquê.
Vazia.
Silenciava.
Em certas raras manhãs quer parar e se esconder.
Fugir. Esperar que o sentimento se esvaia aos poucos, até sobrar mais nada. Até
que a felicidade substitua qualquer coisa que venha a sentir. Porque ser como
Amélia tem suas vantagens. Sabe que nada é para sempre, tudo passa, e
normalmente passa mais rápido do que imagina. Tem esperança de que o sentimento
vazio passe antes que perceba, e sabe que naquele dia mesmo via se sentir
melhor. Tenta viver a vida sob a frase: “Não importa quão ruim seja seu dia,
sempre vai haver algo de bom nele.” e, em dias ruins, sempre tentava pensar
numa coisa boa que aconteceu, algo bom que viu acontecer, algo que apaziguasse
seu coração e lembrasse que tudo passa. A vida surpreendia, e ela se deparava um senhor andando na rua com um buquê de flores bem colorido. Via um casal andando abraçados e sorrindo. Via um neto dando um beijo no avô. E sabia que o dia seguinte viria. Com ele, viria
a normalidade e o balanço normal de sua vida. Estaria em seu eixo de novo. Esperou que a manhã passasse, e quis que a tarde a surpreendesse. Mas
nesse dia...
Nesse dia não conseguiu ver nada de bom, por menor
que fosse. Nesse dia, não aconteceu uma coisinha boa sequer.
(mas a vida continua)
(no dia seguinte)