quarta-feira, 25 de maio de 2016

Amélia.

Às vezes até as pessoas mais felizes ficam tristes. E às vezes até as pessoas mais autossuficientes precisam de alguém. Amélia sempre carrega um sorriso no rosto, uma palavra de conforto e um abraço apertado para quem queira ou precise. Sempre tem um elogio pronto, algo como: "Seus olhos são bonitos.”, ou “Seu sorriso é lindo!”, acompanhado de uma risadinha, ou um tom sério demais para que duvidem de suas palavras. Tentava mostrar aos outros que sempre há algo bonito neles, por mais que não se veja. Nunca foi de precisar dos outros, era suficiente por si só, sabia como se cuidar sozinha. Na verdade, sabia se cuidar tão bem, que cuidava não só de si, mas também, dos outros. No entanto, às vezes quem cuida dos outros esquece um pouco de cuidar de si. Esquece de cuidar de si, se dedica demais ao outro, e o efeito dominó é evidente: sente-se abandonada, como se não fosse importante para ninguém. Melancólica.

Amélia sempre tentou ser para os outros o que esperava que fossem para si. Levava a sério alguns posts que via nas redes sociais, dizendo que devemos ser a mudança que queremos ver no mundo. Devemos, em nossos relacionamentos, sermos as pessoas com quem queremos nos relacionar, sejam estes afetivos ou não. Amizades, namoros, casos... Sejam quem você quer que sejam com você, evita decepção. Não crie expectativas. Não espere do outro o que o outro não pode dar. Tente se projetar no outro. Tente perceber o que você recebe em troca, porque às vezes a gente recebe, sim, carinho e afeto, mas não da maneira que a gente espera. Não jogue. As regras são inúmeras, às vezes a gente nem consegue lembrar direito.

Uma vez perguntaram como conseguia fazer tantas surpresas com sucesso, como sempre conseguia dar os melhores presentes, como conseguia fazer todos se sentirem tão bem quando ela está por perto. “Ah, eu só faço pelas outras pessoas o que eu gostaria que fizessem para mim.”, apesar de nunca ter gostado de surpresas. Um dia, refletindo o porquê de não gostar de surpresas, parou para perceber que não é algo que acontece muito em sua vida. Portanto, não saberia como se comportar caso alguém fizesse por ela o que faz pelos outros. Seria arremessada para longe de sua zona de conforto, e nada de bom poderia vir de um mundo fora de sua zona de conforto.

Mas isso não vem ao caso agora. O importante é que se esforçava para fazer qualquer pessoa feliz sem pedir nada em troco. Sabia muito bem que ninguém é obrigado a fazer por ela o que ela faz com tanta dedicação. Fazia porque queria, e isso é óbvio para qualquer pessoa. Talvez pensasse que deve mostrar às pessoas como elas são importantes e especiais porque ninguém sabe quando foi a última vez que alguém ouviu um elogio, algo bonito. Talvez porque não se sabe quando é a última vez que vai se ver alguém. Ou talvez fosse tomada por um sentimento egoísta de tirar satisfação no brilho no olhar do outro, quem sabe? Egoisticamente altruísta. Esperava nada de ninguém. Esperava, apenas, que visse o brilho no olhar do outro, não olhar de gratidão, mas pela epifania repentina de que se é uma pessoa especial. E é importante. Se deleitava em ver o outro sentir que é especial. Nada além disso, nem mesmo um “obrigado”.

Mas até as pessoas felizes ficam tristes, e até as pessoas mais autossuficientes precisam de alguém. Até quem cuida de todo mundo, de vez em quando, precisa de alguém de quem cuidar. Até quem faz os outros se sentirem importantes precisa se sentir assim. E então, em certas manhãs ensolaradas demais, quentes demais, Amélia acordava com um sentimento ruim. Era aquela vozinha que passa boa parte de nossas vidas em silêncio, mas quando resolve falar, fica no fundo do pensamento, te fazendo criar e procriar paranóias. Algo que te diz que você não é importante na vida dos outros. Esse é o problema de ser quem você quer e espera que sejam: sua única decepção é que você não vai encontrar uma pessoa como você. Não vai encontrar alguém que te faça sentir tão importante quanto você merece sentir que é.

Em certas manhãs, tudo o que Amélia quer é sentir que é importante.

Em certas manhãs não adiantava lembrar das frases preferidas de uma série que amava: “Em 900 anos de tempo e espaço, nunca conheci alguém que não fosse importante.”. Em certas manhãs, em raras manhãs, desejava que fizessem por ela o que ela faz pelo outro. Em certas raras manhãs, sonhava que alguém dissesse o quanto ela é importante. Em certas raras manhãs, precisava de motivos. Em certas raras manhãs, queria ser amiga dela mesma.  Mas poderia, não? Amélia poderia ser amiga de si mesma! Começou a escrever cartas e poemas para si, dizia o quanto é importante e o quanto a faz feliz. Agradece por estar sempre lá para ela, por sempre fazer o melhor para que se sentisse bem. Mas em certas raras manhãs, ser amada por si mesma não é o suficiente. 

Em certas raras manhãs gostaria de ser amada pelos outros. Em certas raras manhãs gostaria de ouvir das outras pessoas como ela as faz sentir. Em certas raras manhãs, gostaria que lhe dessem um motivo apenas, qualquer um, pelo qual ela devia achar que é importante na vida de alguém. Em certas raras manhãs queria não parecer tão pequena, tão insignificante, tão desprezível, tão... Dispensável. Em certas raras manhãs precisava que cuidassem dela. Em certas raras manhãs gostaria de não sentir. Em certas raras manhãs quem cuidava de todos gostaria de ser cuidada. Em certas raras manhãs, Amélia acordava carente.

Carente. Almeja o sentimento que causa nos outros.

Em certas raras manhãs, queria que percebessem. Queria que sentissem. Em certas raras manhãs amor próprio não é suficiente para preencher o vazio existencial que surge. Esse vazio que vem e vai com a mesma velocidade. Ninguém sabe como nasce, ninguém sabe quando cresce... O faz em silêncio, rastejando e, quando Amélia menos percebe, ele está lá, pronto para engolir todo o seu ser. Em certas raras manhãs, o dia já começa ruim sem um motivo específico. Em certas raras manhãs, Amélia acorda triste sem nem saber o porquê.

Vazia.
Silenciava.

Em certas raras manhãs quer parar e se esconder. Fugir. Esperar que o sentimento se esvaia aos poucos, até sobrar mais nada. Até que a felicidade substitua qualquer coisa que venha a sentir. Porque ser como Amélia tem suas vantagens. Sabe que nada é para sempre, tudo passa, e normalmente passa mais rápido do que imagina. Tem esperança de que o sentimento vazio passe antes que perceba, e sabe que naquele dia mesmo via se sentir melhor. Tenta viver a vida sob a frase: “Não importa quão ruim seja seu dia, sempre vai haver algo de bom nele.” e, em dias ruins, sempre tentava pensar numa coisa boa que aconteceu, algo bom que viu acontecer, algo que apaziguasse seu coração e lembrasse que tudo passa. A vida surpreendia, e ela se deparava um senhor andando na rua com um buquê de flores bem colorido. Via um casal andando abraçados e sorrindo. Via um neto dando um beijo no avô. E sabia que o dia seguinte viria. Com ele, viria a normalidade e o balanço normal de sua vida. Estaria em seu eixo de novo. Esperou que a manhã passasse, e quis que a tarde a surpreendesse. Mas nesse dia...

Nesse dia não conseguiu ver nada de bom, por menor que fosse. Nesse dia, não aconteceu uma coisinha boa sequer.

(mas a vida continua)

(no dia seguinte)