sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Avexadinhas #1

Nó na garganta, saudade do calor da rua. Saudade da visão turva das cores dos festivais. Demais. Sem óculos, meio fora de si, meio sensorial demais. Saudade de sentir que o tempo voa mais devagar. Saudades das grandes memórias doces.

Sopa de Letrinhas

 

Imagina por que as palavras são como elas são!

“Palavra” é o buquê de flores que sai da manga do mágico e

“Nuance” é uma dançarina de ballet e

“Branquelas” são duas rãs desengonçadas pulando e se chocando acidentalmente e

“Diversas” tem a textura de uma mordida em biscoitos coloridos em tons pastéis e

“Pinicar” tem um senso de humor delicioso e

“Sublime” é das cores de uma galáxia e

“Deliquescência” tá descendo num tobogã e

“Espetacular” são holofotes rodando iluminando pés sapateando e

“Épico” é um papel envelhecido e

“Pensar” tem a calmaria do céu cheio de nuvens à noite e

“Sentir” só pode ser vermelho e

“Machucado” tem sabor de chocolate e

“Adeus” é um monstrinho híbrido que às vezes é um belo herói.


E “Fim” é um convidado inesperado.

Sobre a escrita

 

Tem dias que acordo me perguntando quantos textos intitulados “autobiografia” ainda irei escrever em minha vida.


Ora, se, já não sou o mesmo… ser humano! desde que acordei,

Quem dirá permanecer a mesma desde a última vez que escrevi uma autobiografia.

Sequer lembro quando foi a última autobiografia escrita.

O que mudou? Nem sei.

Talvez eu busque esses textos para revisitar essas versões antigas mas não desimportantes de mim.

Recentemente descobri que também sou feita de silêncios.

Taí, uma frase bonita…

Feita de silêncios.

Tão bonita quanto clamar para si o título de artista do impossível.

Tão solenemente rebelde quanto se chamar antipoeta.

Ai, a antipoesia…!

Me acolheu tão bem…!

Logo a mim, que pertencia a lugar nenhum!

Logo essa escritora que se insurge contra a rima e a métrica,

Que se desagrada com as formas e

Que me rebelo contra o uso de palavras eruditas demais.

Eu quero mais é que todo mundo possa ler e sentir a antipoesia!

Tudo em mim grita antipoesia.

Tudo o que sou está na antipoesia.

Essa ovelha desgarrada que não gostava de se chamar de poetisa

Por justamente rejeitar todas as raízes tão sólidas da poesia,

Agora escrevo antipoesia.

E desafio quem sentir coragem o suficiente a me dizer que não o sou!

Toda minha arte grita rebeldia.

Se não gritasse, bem… Não seria minha.

Se não transbordasse o escárnio que é o viver,

O sarcasmo ao rir de si…

Quem mais seria?

Nessas entrelinhas de antipoesia da autobiografia, chego a me perguntar

O que é sucesso?

Serei um dia o que muitos consideram uma artista bem sucedida?

Pois bem… Já me considero bem sucedida.

Como não consideraria? Escrevo para mim, escrevo o que quero.

Desligo o cérebro pro coração poder falar…

Uma voz dentro de mim diz: “Mas em certo momento o artista deixa de criar para si.”

Vou conceder a essa voz uma concordância.

De fato, em algum momento deixo de escrever para mim.

Mas apenas o faço porque confio no poder da arte.

Na cura, na guiança…

Então se apenas uma pessoa fosse tocada por essas palavras metodjcamente escolhidas de brincadeira

Que podem trazer algum erro, ou não…

Já ficaria feliz.

Ora, por que escrever e colocar palavras erradas propositalmente?

Por birra! Risos.

Pra ver quem presta atenção?

Porque eu quero!

Porque a perfeição é entediante.

Nas curvas de cada letra da antipoesia encontro um pouco mais de minha história.

Trânsito

Nota da escritora: para uma leitura mais sensorial, que tal ler enquanto ouve essa música aqui? Planet Caravan - Black Sabbath foi a música que inspirou a escrita desse texto. Boa leitura!


Os tambores levam a atenção ao céu.

Estamos na mata, na beira do rio.

No alto do céu brilha uma Lua Cheia.

Me sinto em casa.

Subitamente parece que da comunhão da natureza ganhei o presente de falar todas as palavras que existem em todas as línguas 

A capacidade de falar, entender e escrever todas elas,

Ainda que com erros propositais, só para me divertir um pouco.


Me aconchego no abraço do fogo com o vento da noite.

Não dá para não sentir o fogo, mesmo no frio e sinto um carinho das chamas cuspidas ao céu,

Como uma oração a todas as divindades que já existiram e ainda irão existir

Agradecendo e pedindo por proteção.

“Que nossos caminhos sejam sempre iluminados,

Que nossos ancestrais e guardiões sempre nos protejam.”


O fogo quase toca os céus, cuspido por aquele menino pirofagista,

Que gosta de usar uma saia de palha seca,

Para parecer um filho de orixá.

Uma vez me disseram que ele iria esquecer disso.

Ou desaprender, não me recordo bem de qual foi a palavra usada.

Achei que estava tudo bem, quando a gente cresce, a gente esquece de ser criança mesmo.

A gente desaprende.

No crescimento a gente desaprende e vira adulto pra reaprender o que toda criança já sabe.

É a vida.

E foi da vida que havia recebido aquela memória, a de cuspir fogo.

Foi da vida anterior que herdou esse saber, não era presente dessa.

Precisei acreditar em vidas passadas depois disso.

Vi esse momento acontecer já com a sensação de que seria uma boa memória.


Senti um arrepio, como se algum ancestral me tocasse o ombro e mais uma vez olhei pra Lua,

Respirei fundo.

Dentro de mim eu sabia que em algum lugar da mata,

Sob aquele mesmo céu e noite a Caipora e o Boitatá dançavam,

E como se sua dança me contasse todas as histórias de seus povos

Foram esses tambores e o som da noite na mata

Que me lembraram uma antiga história cuja moral dizia que até certa idade,

A criança ainda não sabe onde e quando está, 

Por isso vive na encruzilhada entre vidas, 

Lembrando o que havia lá e tentando se situar no que há do lado de cá,

Até o momento em que sente em suas entranhas a dor e a beleza do tempo e espaço que ocupa com o rotacionar da Terra.

Vai esquecendo, 


esquecendo,

esquecendo…

De que?

Talvez seja coisa demais para lembrar.

Ou talvez você lembre… Quando o momento certo chegar,

Quando os tambores rufarem, quando a Lua estiver na posição correta…

Quando aquele menino cuspir fogo novamente.

Quem sabe?

Gênesis

 

Bang Bang!

My baby shot me down...
Eu brincava de faroeste americano porque o faroeste americano era o que eu conhecia
Clint Eastwood, John Wayne, Billy the Kid!
Filme de viagem no tempo só americano também

Filme de ficção científica, de zumbi, de alienígena… Tudo americano.

Tecnologia americana, “espiritualidade” americana.
De volta para o futuro americano.

Eu conhecia a “América”, os Estados Unidos muito mais do que conhecia minha própria terra.

Cresci ouvindo que no meu futuro eu ia morar fora, ia casar com um americano.

Mas não… Eu nasci para morar aqui.

Cresci achando que o futuro estava em outro lugar, que o futuro era estar fora.
Mas o futuro é o nordeste, o futuro é do nordeste.
O futuro é de onde se morre mortemorridaoumortematada
Onde se vivemorteevidaseverina

Onde se come tapioca no café da manhã,

Macaxeira, pirão de queijo, feijão-verde, arroz-da-terra e farofa d’água no almoço

E no jantar, mungunzá.

Nesse nordeste, onde se chama por mainha e painho,
Onde Bumba meu boi morre e ressuscita todo dia,
Filho da história do tempo que corre em ciclos
Como a grande serpente que morde seu próprio rabo
A chamo de Boitatá.
O futuro é aqui, na batida da música que anuncia a chegada da cumadi fulôzinha
Onde o papa figo anda livre e se você não se comportar... O véi do saco te pega!
O futuro do nordeste é ter seus filhos de volta à casa
Depois de tentar fugir da seca e dosolderacharamulêraquenãodeixavocênempensar!

A diáspora inversa.
O futuro do nordeste é resistência na ponta do facão de Lunga
"Quem nasce em Bacurau é o que?"
"É gente."
Gente como todos os nordestinos espalhados pelo mundo afora.

O mundo é o futuro dos nordestinos e o futuro do mundo é o nordestefuturismo.
O mundo é do nordestefuturismo.

Carta a Nicanor Parra

 

Querido Parra,


Acabei de ler seu livro e estou aos prantos… Quem não? Existe uma música de uma cantora chamada Letrux com esse título. Acho que você gostaria dela. Acho que Letrux carrega na música a antipoesia que nos é tão cara. Sinto que devia escrever-te mais, porque há mais o que dizer… Há constelações inteiras por dizer! Ao mesmo tempo, as palavras escritas aqui já me parecem suficientes. Não o são. Acho que nunca haverá palavras suficientes a uma antipoeta.


Sim… Foi assim que passei a me chamar desde que descobri a antipoesia. Reclamei esse título para mim desde que ouvi falar na antipoesia e os motivos você descobrirá aqui. Será audácia minha? Se for, bem… Paciência. Sempre fui audaciosa e obstinada, mesmo! Um pouco insolente também. O eruditismo e a linguagem solene da poesia sempre me afastaram do título de poeta. É o pedestal… O maldito pedestal! Agora você me deu um lugar ao qual pertencer, obrigada por isso. Eu nunca senti que queria pertencer, menina moleca ovelha desgarrada que sou! Mas pertencer à antipoesia é bom. Ou é a antipoesia que nos pertence? A arte pertence ao artista ou o artista pertence à arte? Gostaria de lhe perguntar isso porque gosto de te imaginar como um artista que gosta da troca, da partilha. E, se não gostasse, talvez eu pudesse te fazer começar a gostar. Se você me desse a chance, é claro. Não é isso o que nós, antipoetas, artistas, queremos? Uma chance… Já tenho minha opinião nesse assunto, eu acho. Acho que artistas são meros humanos e a arte por si só tem em si toda a força do próprio tempo, afinal, ela estava aqui antes do artista e aqui permanecerá mesmo após a partida desse artista, assim como seu livro, que leio dois anos após a sua morte.


E por falar nisso, ler seus antipoemas diretamente de 2020 parece uma viagem no tempo: em 1954 você já tinha uns 40 anos? Eu, aqui, aos meus 27, encontrei em suas palavras um pouco das minhas, apesar de escrevermos de formas distintas. Me faz querer revolucionar também, sabe? Me afasta a ideia de glamour que transmite a ideia de uma revolução. Revolução em quê, afinal? Nas artes? Na escrita? E quem sou eu para fazê-lo? Ora, uma mera escritora conhecida por ninguém, lida por pouquíssimos (cada um extremamente importante, diga-se de passagem), que escreve há mais de 13 anos mas só saiu do armário enquanto escritora e artista agora? Pergunto: o que torna um artista um artista? Grande reconhecimento? Se assim for, provavelmente nunca serei uma artista. A primeira obra de arte? Se assim for, sou artista desde os cinco anos. Autoafirmação? Se assim for, apenas sou artista há meses. Foi nessa quarentena que resolvi “bater no peito” e me afirmar como tal. Ainda assim, se me considerarmos uma artista que ainda engatinha em sua trajetória, isso apagará todos os anos em que fiz arte escondida do mundo, no silêncio da madrugada, como se este fosse o maior segredo que carrego, não? Bem, deixo a você a resposta para isso. Só não me apareça com textos filosóficos porque não estou com paciência para as filosofias de outros.


De volta à revolução: sei que a desejo com todas as minhas forças. Só não sei o que desejo revolucionar… Ainda. Espero encontrar aliades nessa revolução. Pessoas que amem arte, que não apenas queiram consumir, mas cujo desejo de criar é tão forte… Mas tão forte! Que se não criar…! A cabeça explode! Não consegue dormir! Que queiram dividir. Esses sonhos malucos de escritor, você sabe…


Acho que a antipoesia sempre correu em minhas veias, mesmo sem que eu soubesse. Já devo ter escrito algo parecido com isso em alguma outra poesia perdida por aí. Ler suas palavras foi como voltar para casa. E que viagem! Estou não botando sangue pela boca e narinas mas, sim, estou com sangue nos olhos! Quero criar! Preciso criar!


Me encontrar com você no seu post mortem causou um embate, uma luta comigo mesma! Primeiro, quis me comparar à sua escrita, mas, como poderia fazê-lo? 38 anos antes de eu nascer você já escrevia! E, novamente, como poderia fazê-lo se vivemos em épocas tão diferentes, se somos pessoas diferentes, de idades e vivência totalmente diferentes! Lembrei disso no exato momento em que estava duvidando de meu valor como artista. Depois disso, senti que se enraizava em mim a seguinte crença: a antipoesia é imprevisível. Que essa característica incalculável (e, aqui, paro para rir ao usar uma palavra que remete à matemática de um antipoeta matemático) torne a antipoesia diversa. Que ela não se torne um grande templo com arquitetura impecável e que, na verdade, seja tão livre quanto um pássaro. Esse é meu mais novo sonho. Depois dessa cura, a leitura foi só sentir, como um constante arrepio. Incrível. Sonho, agora, também chegar aos 103 anos. Quem sabe eu não publique um “Só para maiores de cem anos” também?


Que um dia possamos nos encontrar,

Com carinho.