quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Avexadinhas #6

 Procuro palavras que combinem com essa melodia numa caixinha de música mas só encontro uma bailarina rodopiando, rodopiando, rodopiando...! Sei não, acho que é difícil... Acendo um cigarro com as faíscas que nascem do rodopiar da bailarina. Procuro fazer música com seu corpo dançando junto ao meu. O cigarro é costume acender depois de tudo, torna o ambiente sensual. Vamo tomar um banho junte?

Avexadinhas #5

 Que voz bonita...! Parece até um abraço. Tenho sentido falta de abraços da mesma forma que tenho me sentido indesejade. Jade é uma pedra bonita, né? Bonita que nem essa voz. Ah, se eu tivesse uma voz bonita assim... Minha voz ia valer mais que tudo. Hoje tudo tem que valer algo. Tudo para não pensar no que eu venho sentindo também. Tenho me esquivado. Fugir até meus monstros me pegarem... Covarde. Riso lindo, que nem essa voz.

Avexadinhas #4

 Ouço a música entrecortada já sem saber se é falha dela, no fone ou na internet. Até isso? O que mais falhará comigo? Quem mais? É estressante, sabe? Viver com produtos com vícios, pessoas vazias e coisas pela metade... Sei não, é difícil aceitar coisas incompletas, afinal, já deixei de me apaixonar pelo que está infomple....

Avexadinhas #3

 Dor na coluna em tons de amarelo. Deve ser do peso de carregar o mundo em minhas costas. Isso ia ser uma piada mas tiro saiu pela culatra. Queria torcê-la como se fosse um macarrão fusili, talvez assim volte pro lugar. Talvez não. A coluna, não a piada. Acho que preciso de um travesseiro novo.

Avexadinhas #2

 Eu quero é férias R-O-L-A, FÉRIAS!!! Quero minha libido de volta! A rapariga saiu pra passear e não voltoi até agora! Acredita nisso? Deve ter encontrado uma pessoa bonita no caminho e se jogou nos braços... Ah, danada! Volte pra mim, mulher! Esqueci de tu não! Saudades pensar com a larissinha mas melhor ainda é sentir. Risos.

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Avexadinhas #1

Nó na garganta, saudade do calor da rua. Saudade da visão turva das cores dos festivais. Demais. Sem óculos, meio fora de si, meio sensorial demais. Saudade de sentir que o tempo voa mais devagar. Saudades das grandes memórias doces.

Sopa de Letrinhas

 

Imagina por que as palavras são como elas são!

“Palavra” é o buquê de flores que sai da manga do mágico e

“Nuance” é uma dançarina de ballet e

“Branquelas” são duas rãs desengonçadas pulando e se chocando acidentalmente e

“Diversas” tem a textura de uma mordida em biscoitos coloridos em tons pastéis e

“Pinicar” tem um senso de humor delicioso e

“Sublime” é das cores de uma galáxia e

“Deliquescência” tá descendo num tobogã e

“Espetacular” são holofotes rodando iluminando pés sapateando e

“Épico” é um papel envelhecido e

“Pensar” tem a calmaria do céu cheio de nuvens à noite e

“Sentir” só pode ser vermelho e

“Machucado” tem sabor de chocolate e

“Adeus” é um monstrinho híbrido que às vezes é um belo herói.


E “Fim” é um convidado inesperado.

Sobre a escrita

 

Tem dias que acordo me perguntando quantos textos intitulados “autobiografia” ainda irei escrever em minha vida.


Ora, se, já não sou o mesmo… ser humano! desde que acordei,

Quem dirá permanecer a mesma desde a última vez que escrevi uma autobiografia.

Sequer lembro quando foi a última autobiografia escrita.

O que mudou? Nem sei.

Talvez eu busque esses textos para revisitar essas versões antigas mas não desimportantes de mim.

Recentemente descobri que também sou feita de silêncios.

Taí, uma frase bonita…

Feita de silêncios.

Tão bonita quanto clamar para si o título de artista do impossível.

Tão solenemente rebelde quanto se chamar antipoeta.

Ai, a antipoesia…!

Me acolheu tão bem…!

Logo a mim, que pertencia a lugar nenhum!

Logo essa escritora que se insurge contra a rima e a métrica,

Que se desagrada com as formas e

Que me rebelo contra o uso de palavras eruditas demais.

Eu quero mais é que todo mundo possa ler e sentir a antipoesia!

Tudo em mim grita antipoesia.

Tudo o que sou está na antipoesia.

Essa ovelha desgarrada que não gostava de se chamar de poetisa

Por justamente rejeitar todas as raízes tão sólidas da poesia,

Agora escrevo antipoesia.

E desafio quem sentir coragem o suficiente a me dizer que não o sou!

Toda minha arte grita rebeldia.

Se não gritasse, bem… Não seria minha.

Se não transbordasse o escárnio que é o viver,

O sarcasmo ao rir de si…

Quem mais seria?

Nessas entrelinhas de antipoesia da autobiografia, chego a me perguntar

O que é sucesso?

Serei um dia o que muitos consideram uma artista bem sucedida?

Pois bem… Já me considero bem sucedida.

Como não consideraria? Escrevo para mim, escrevo o que quero.

Desligo o cérebro pro coração poder falar…

Uma voz dentro de mim diz: “Mas em certo momento o artista deixa de criar para si.”

Vou conceder a essa voz uma concordância.

De fato, em algum momento deixo de escrever para mim.

Mas apenas o faço porque confio no poder da arte.

Na cura, na guiança…

Então se apenas uma pessoa fosse tocada por essas palavras metodjcamente escolhidas de brincadeira

Que podem trazer algum erro, ou não…

Já ficaria feliz.

Ora, por que escrever e colocar palavras erradas propositalmente?

Por birra! Risos.

Pra ver quem presta atenção?

Porque eu quero!

Porque a perfeição é entediante.

Nas curvas de cada letra da antipoesia encontro um pouco mais de minha história.

Trânsito

Nota da escritora: para uma leitura mais sensorial, que tal ler enquanto ouve essa música aqui? Planet Caravan - Black Sabbath foi a música que inspirou a escrita desse texto. Boa leitura!


Os tambores levam a atenção ao céu.

Estamos na mata, na beira do rio.

No alto do céu brilha uma Lua Cheia.

Me sinto em casa.

Subitamente parece que da comunhão da natureza ganhei o presente de falar todas as palavras que existem em todas as línguas 

A capacidade de falar, entender e escrever todas elas,

Ainda que com erros propositais, só para me divertir um pouco.


Me aconchego no abraço do fogo com o vento da noite.

Não dá para não sentir o fogo, mesmo no frio e sinto um carinho das chamas cuspidas ao céu,

Como uma oração a todas as divindades que já existiram e ainda irão existir

Agradecendo e pedindo por proteção.

“Que nossos caminhos sejam sempre iluminados,

Que nossos ancestrais e guardiões sempre nos protejam.”


O fogo quase toca os céus, cuspido por aquele menino pirofagista,

Que gosta de usar uma saia de palha seca,

Para parecer um filho de orixá.

Uma vez me disseram que ele iria esquecer disso.

Ou desaprender, não me recordo bem de qual foi a palavra usada.

Achei que estava tudo bem, quando a gente cresce, a gente esquece de ser criança mesmo.

A gente desaprende.

No crescimento a gente desaprende e vira adulto pra reaprender o que toda criança já sabe.

É a vida.

E foi da vida que havia recebido aquela memória, a de cuspir fogo.

Foi da vida anterior que herdou esse saber, não era presente dessa.

Precisei acreditar em vidas passadas depois disso.

Vi esse momento acontecer já com a sensação de que seria uma boa memória.


Senti um arrepio, como se algum ancestral me tocasse o ombro e mais uma vez olhei pra Lua,

Respirei fundo.

Dentro de mim eu sabia que em algum lugar da mata,

Sob aquele mesmo céu e noite a Caipora e o Boitatá dançavam,

E como se sua dança me contasse todas as histórias de seus povos

Foram esses tambores e o som da noite na mata

Que me lembraram uma antiga história cuja moral dizia que até certa idade,

A criança ainda não sabe onde e quando está, 

Por isso vive na encruzilhada entre vidas, 

Lembrando o que havia lá e tentando se situar no que há do lado de cá,

Até o momento em que sente em suas entranhas a dor e a beleza do tempo e espaço que ocupa com o rotacionar da Terra.

Vai esquecendo, 


esquecendo,

esquecendo…

De que?

Talvez seja coisa demais para lembrar.

Ou talvez você lembre… Quando o momento certo chegar,

Quando os tambores rufarem, quando a Lua estiver na posição correta…

Quando aquele menino cuspir fogo novamente.

Quem sabe?

Gênesis

 

Bang Bang!

My baby shot me down...
Eu brincava de faroeste americano porque o faroeste americano era o que eu conhecia
Clint Eastwood, John Wayne, Billy the Kid!
Filme de viagem no tempo só americano também

Filme de ficção científica, de zumbi, de alienígena… Tudo americano.

Tecnologia americana, “espiritualidade” americana.
De volta para o futuro americano.

Eu conhecia a “América”, os Estados Unidos muito mais do que conhecia minha própria terra.

Cresci ouvindo que no meu futuro eu ia morar fora, ia casar com um americano.

Mas não… Eu nasci para morar aqui.

Cresci achando que o futuro estava em outro lugar, que o futuro era estar fora.
Mas o futuro é o nordeste, o futuro é do nordeste.
O futuro é de onde se morre mortemorridaoumortematada
Onde se vivemorteevidaseverina

Onde se come tapioca no café da manhã,

Macaxeira, pirão de queijo, feijão-verde, arroz-da-terra e farofa d’água no almoço

E no jantar, mungunzá.

Nesse nordeste, onde se chama por mainha e painho,
Onde Bumba meu boi morre e ressuscita todo dia,
Filho da história do tempo que corre em ciclos
Como a grande serpente que morde seu próprio rabo
A chamo de Boitatá.
O futuro é aqui, na batida da música que anuncia a chegada da cumadi fulôzinha
Onde o papa figo anda livre e se você não se comportar... O véi do saco te pega!
O futuro do nordeste é ter seus filhos de volta à casa
Depois de tentar fugir da seca e dosolderacharamulêraquenãodeixavocênempensar!

A diáspora inversa.
O futuro do nordeste é resistência na ponta do facão de Lunga
"Quem nasce em Bacurau é o que?"
"É gente."
Gente como todos os nordestinos espalhados pelo mundo afora.

O mundo é o futuro dos nordestinos e o futuro do mundo é o nordestefuturismo.
O mundo é do nordestefuturismo.

Carta a Nicanor Parra

 

Querido Parra,


Acabei de ler seu livro e estou aos prantos… Quem não? Existe uma música de uma cantora chamada Letrux com esse título. Acho que você gostaria dela. Acho que Letrux carrega na música a antipoesia que nos é tão cara. Sinto que devia escrever-te mais, porque há mais o que dizer… Há constelações inteiras por dizer! Ao mesmo tempo, as palavras escritas aqui já me parecem suficientes. Não o são. Acho que nunca haverá palavras suficientes a uma antipoeta.


Sim… Foi assim que passei a me chamar desde que descobri a antipoesia. Reclamei esse título para mim desde que ouvi falar na antipoesia e os motivos você descobrirá aqui. Será audácia minha? Se for, bem… Paciência. Sempre fui audaciosa e obstinada, mesmo! Um pouco insolente também. O eruditismo e a linguagem solene da poesia sempre me afastaram do título de poeta. É o pedestal… O maldito pedestal! Agora você me deu um lugar ao qual pertencer, obrigada por isso. Eu nunca senti que queria pertencer, menina moleca ovelha desgarrada que sou! Mas pertencer à antipoesia é bom. Ou é a antipoesia que nos pertence? A arte pertence ao artista ou o artista pertence à arte? Gostaria de lhe perguntar isso porque gosto de te imaginar como um artista que gosta da troca, da partilha. E, se não gostasse, talvez eu pudesse te fazer começar a gostar. Se você me desse a chance, é claro. Não é isso o que nós, antipoetas, artistas, queremos? Uma chance… Já tenho minha opinião nesse assunto, eu acho. Acho que artistas são meros humanos e a arte por si só tem em si toda a força do próprio tempo, afinal, ela estava aqui antes do artista e aqui permanecerá mesmo após a partida desse artista, assim como seu livro, que leio dois anos após a sua morte.


E por falar nisso, ler seus antipoemas diretamente de 2020 parece uma viagem no tempo: em 1954 você já tinha uns 40 anos? Eu, aqui, aos meus 27, encontrei em suas palavras um pouco das minhas, apesar de escrevermos de formas distintas. Me faz querer revolucionar também, sabe? Me afasta a ideia de glamour que transmite a ideia de uma revolução. Revolução em quê, afinal? Nas artes? Na escrita? E quem sou eu para fazê-lo? Ora, uma mera escritora conhecida por ninguém, lida por pouquíssimos (cada um extremamente importante, diga-se de passagem), que escreve há mais de 13 anos mas só saiu do armário enquanto escritora e artista agora? Pergunto: o que torna um artista um artista? Grande reconhecimento? Se assim for, provavelmente nunca serei uma artista. A primeira obra de arte? Se assim for, sou artista desde os cinco anos. Autoafirmação? Se assim for, apenas sou artista há meses. Foi nessa quarentena que resolvi “bater no peito” e me afirmar como tal. Ainda assim, se me considerarmos uma artista que ainda engatinha em sua trajetória, isso apagará todos os anos em que fiz arte escondida do mundo, no silêncio da madrugada, como se este fosse o maior segredo que carrego, não? Bem, deixo a você a resposta para isso. Só não me apareça com textos filosóficos porque não estou com paciência para as filosofias de outros.


De volta à revolução: sei que a desejo com todas as minhas forças. Só não sei o que desejo revolucionar… Ainda. Espero encontrar aliades nessa revolução. Pessoas que amem arte, que não apenas queiram consumir, mas cujo desejo de criar é tão forte… Mas tão forte! Que se não criar…! A cabeça explode! Não consegue dormir! Que queiram dividir. Esses sonhos malucos de escritor, você sabe…


Acho que a antipoesia sempre correu em minhas veias, mesmo sem que eu soubesse. Já devo ter escrito algo parecido com isso em alguma outra poesia perdida por aí. Ler suas palavras foi como voltar para casa. E que viagem! Estou não botando sangue pela boca e narinas mas, sim, estou com sangue nos olhos! Quero criar! Preciso criar!


Me encontrar com você no seu post mortem causou um embate, uma luta comigo mesma! Primeiro, quis me comparar à sua escrita, mas, como poderia fazê-lo? 38 anos antes de eu nascer você já escrevia! E, novamente, como poderia fazê-lo se vivemos em épocas tão diferentes, se somos pessoas diferentes, de idades e vivência totalmente diferentes! Lembrei disso no exato momento em que estava duvidando de meu valor como artista. Depois disso, senti que se enraizava em mim a seguinte crença: a antipoesia é imprevisível. Que essa característica incalculável (e, aqui, paro para rir ao usar uma palavra que remete à matemática de um antipoeta matemático) torne a antipoesia diversa. Que ela não se torne um grande templo com arquitetura impecável e que, na verdade, seja tão livre quanto um pássaro. Esse é meu mais novo sonho. Depois dessa cura, a leitura foi só sentir, como um constante arrepio. Incrível. Sonho, agora, também chegar aos 103 anos. Quem sabe eu não publique um “Só para maiores de cem anos” também?


Que um dia possamos nos encontrar,

Com carinho.


sábado, 9 de maio de 2020

Numa quinta Domingas aparece

ATENÇÃO: Antes de começar a leitura desse texto, sugiro que você clique aqui e dê play para que a experiência possa ser a mais completa possível. Boa leitura!



A história de hoje começa no dia de ontem. Lua crescente em Escorpião. É amanhã o grande dia. “Devo ir?”, pergunto ao oráculo mesmo sabendo que não tenho muita escolha. Já senti o chamado, agora preciso ir. “Iluminação” foi a minha resposta, uma carta com energia de Lua Cheia me mandando não perder o encontro com a Lua Cheia, me convidando a alcançar a consciência plena. Há encontros dos quais não podemos fugir. E quando a Lua te chama para um encontro, então… “E se eu for, o que vou encontrar lá?”, quis saber, afinal essa época do mês sempre me deixa ansiosa. Aos encantos e força da Lua Cheia, reajo com melindres. Sorrio ao ver qual carta o oráculo me mostrou “Estou pronta para fazer o que vim fazer”, é o que diz a carta “Desabrochar”, pela qual nutro um carinho especial. Gostaria de ter essa palavra para sempre marcada em minha pele.


E então estava decidida: não vou fugir da Lua, não vou fugir ao meu desabrochar, muito menos correr da luz. Apesar da minha relutância em ir, não consigo lembrar de um encontro sequer que fosse ruim, afinal, minha necessidade por prestar minhas orações ao Universo, meus protetores e ancestrais está sempre comigo. Minha necessidade por honrar meus rituais nunca me abandona. De tempos em tempos preciso sair da pele de mulher e caminhar neste mundo com outras vestes. Ainda que eu tenha que sentir o amargo dissabor dos portões para esse encontro, considero esse um preço pequeno demais a ser pago diante do que viverei nesse momento. Acendo uma vela roxa, oro, chamando meus ancestrais e protetores e vou por esse caminho. É Lua Cheia em Escorpião. Lua de Buda. A promessa é de ser a noite mais espiritual do meu ano. Intensa, como pequenas frases. Forte. Misteriosa. A grandeza desse mistério me atrai, me faz sentir como se eu fosse uma criança descobrindo todos os maiores segredos do Universo, contados pelo desaguar da cachoeira mais antiga que já existiu.


Dou o primeiro passo em meu caminho, a Lua ainda está nascendo, mas sua luz é tão forte que até parece dia. Ao olhar para o chão, vejo flores. Muitas flores, das mais variadas cores e espécies. Girassóis, lírios, rosas vermelhas por toda parte. No chão, no ar, nos cabelos de meus amigos e minha família que me esperavam para me lembrar de que não estou só. Vejo seus sorrisos, quero abraçá-los todos, mas são tantos que não consigo. Alguns, parece que não vejo há anos. Choro de saudade. Choro, choro, choro até achar que não tenho mais lágrimas. Mas tenho. “Quero chorar mais um pouquinho”, digo, como se tivesse voltado aos meus seis anos de idade. Às vezes eu esqueço de chorar. Sinto de mim emanar todo o amor que posso carregar comigo, desejo-lhes amor e cura.


Sinto fome. Não deveria, já que me alimentei antes de vir, mas a fome está aqui, como se estivesse desde muitas outras vidas antes dessa de agora. Sigo caminhando e, agora, além da fome, oscilo entre sentir calor e frio e, também, um leve sono. Bocejo. Ouço o rufar de tambores não muito longe de mim e encontro antigos familiares, que cuidam de mim enquanto tiro um cochilo perto do fogo. Sacurna está perto de mim, conversando com suas cobras amigas enquanto sonho. Abro os olhos lentamente e, com a visão ainda turva, vejo a madre terra agachada dançando com sua filha, a menina libertina, em suas costas. Quero dançar com elas, mas ainda não consigo porque sinto que falta alguém. Falta a mulher-touro. De repente, uma cobra gigante e prateada tenta me atacar e me fazer mal, mas não consegue. É impedida por todos aqueles que me amam, e são muitos. Estou protegida até quando estou vulnerável. Ainda deitada, observo a cobra queimar até virar cinzas com certa indiferença. “Ele não é ruim, só é diferente de você e quis te atacar porque ficou com medo da sua grandeza.”, eu acredito.

Me levanto e me sento onde posso ver a Lua, afinal, meu encontro também era com ela, mas logo sinto minhas asas. Está na hora de voar um pouco, voar é bom, é gostoso. É livre. Voo por toda aquela floresta à noite e, quando estou pousando, sinto meu corpo se transmutar no de uma leoa. E corro até o abismo mais próximo, do qual salto e, mais uma vez me transformo numa águia! Pulo de pele em pele até me cansar e voltar a ser mulher, agora sem minhas roupas antigas, usando apenas uma saia longa roxa e muitos colares verdes. Encostada numa árvore de Jurema, deixo a energia da Lua me tocar, me permito sentir a vibração de meu corpo. Sorrio ao sentir aquela força. A música está dentro de mim como se não houvesse nada mais. Me sinto grande, forte e protegida. Olho para o canto de meu quarto, e vejo uma mulher de cabelos pretos longos que já não é uma desconhecida, encostada na porta me observando. Já a vi tantas outras vezes em tantas outras formas e em tantos lugares diferentes que vê-la ali é natural, como se eu a estivesse esperando.


Atrás de mim, seis familiares meus tocam tambor. Eu gosto de tambores, seu som faz meu corpo dançar. Levanto, busco meus leques, os acendo e danço com fogo, até que chega a mulher-touro. Danço com ela, com a moça que chamo de Madre Terra e sua menina libertina e com Sacurna. Tudo está em seu perfeito lugar, tudo está acontecendo da forma que deve ser. Me canso e sento no chão, lembro do rapaz-coruja e sinto falta de seu abraço. Ah, quanto tempo faz que não o vejo! Abraço a mim mesma, como se aquele fosse um abraço do próprio e me contento com o que tenho, mas ainda pensando “Quando eu o vir, vou morar em seu abraço por um ano inteiro.”


Olho para a Lua, admiro sua beleza e mais uma vez me transformo em águia e saio voando. Quando volto, mais uma vez sento no chão e sinto meu corpo, alongo minha coluna tentando tocar meus pés e, lentamente, vou voltando para ficar de coluna ereta, sentindo as minhas mãos tocarem meus tornozelos, meus joelhos, minhas coxas, até descansarem uma sobre a outra. A música que agora toca fala diretamente ao meu útero, transformando os movimentos de minha cintura em uma dança quase erótica em tons de vermelho, preto e amarelo, cor de fogo. Libertação sexual. A cara do fogo. Abro as pernas e jogo os ombros pra trás. “Deixo entrar o que tiver que entrar, seja lá se for bom ou ruim, eu estou preparada. Se for bom, deixará frutos e, se for ruim, não permanecerá por muito tempo porque nada nem ninguém que me quer mal consegue me tocar. Estou de coração e ventre abertos.”, ao passo que vejo todos os animais rastejantes daquela floresta entrarem dentro de mim. Cobras, ratos, lagartos, escorpiões, animais de todas as espécies que a muitos causam repulsa. Aceito as coisas como são. É o presente da Lua de Escorpião. Respiro fundo e acolho a todos os que me querem em meu ventre. Abro os olhos e não há mais floresta ali. Não há mais meu quarto. Apenas eu.


Abro os olhos e me vejo andando em cima dos impulsos elétricos de sinapses humanas. Talvez as minhas. Em vermelho, amarelo e preto, cor de fogo. Novamente me sento e sinto de minhas costelas brotarem patas peludas e em meu rosto nascerem mais seis olhos. Me tornei uma aranha gigante que tem sonhos de fogo, cujos fios de sua teia caem em cachos no meu rosto formando mais uma vez uma dança com leques. Isso me faz gargalhar e a mulher encostada na porta do meu quarto muda de posição, me observando curiosa. A tecelã da criatividade me avisa gentilmente que tão importante quanto o resultado, é o caminho. Paciência, Domingas.


Deito no chão, olhando para a Lua e canto. Canto como se nunca tivesse sentido vergonha, canto porque minha alma precisa do cantar e a minha voz é a mais bonita que eu já ouvi em toda minha vida. Uma flauta toca, levanto para dançar com as mulheres que me acompanham na vida atual e assim vou caminhando, mudando de pele, tocando maracás, sendo mais uma vez água e leoa, até que reencontro minha cama. Deito ainda dançando com as mãos. Eu adoro minhas mãos. Continuo cantando. E assim despeço-me de mais um encontro.


Escuta teus ancestrais que você não chegou aqui sozinha, não.
Nas noites de Lua Cheia, Domingas se encontra com todas as suas vidas anteriores.
Ainda sente fome.



quinta-feira, 30 de abril de 2020

Saudade em dias pandêmicos

Já nem sei mais que dia é hoje
Perdi as contas
E nem acho que contar vale a pena
Contar pra quê?
Todo dia os dias tem passado assim
Silenciosos, lentos, custosos
Solitários, ainda que tenha pessoas perto
Quando foi que recebi meu último abraço?
Vasculho minha mente buscando essa doce memória
Não consigo lembrar
Sinto falta.
Sinto falta de abraços e beijinhos e carinhos
E todos os "inhos" que antes eu rejeitava
Por valorizar meu espaço pessoal
Não quero mais mandar mensagensoutextosouvídeosoucartasoupomboscorreioousinaisdefogo! dizendo que sinto falta
Dizendo o quanto se é importante e como minha vida mudou depois de conhecê-los
Quero o toque.
Quero o abraço.
Mesmo no calor, mesmo com suor.
Não aguento mais o amor virtual.
Quero o amor real.
E todos aqueles que amo perto de mim.
E se o preço que eu devo pagar por isso é ver o tempo correr novamente...
Que o seja.
O pagarei.
Anseio pelo resto da minha vida.

Não aguento mais o amor em tempos de COVID-19.

quinta-feira, 26 de março de 2020

Pandemia


O dedo bate nervoso na mesa.
Não faz barulho porque havia roído as unhas na noite anterior.
Ansiosa, né.
E ainda bem! Um “ainda bem” seguido de todas as exclamações possíveis,
Porque o barulho da unha batendo na mesa seria demais.
Irrita só de pensar!
Tá bom já de nervosismo, já basta o dedo
E o coração.
Mas pudera não estar nervosa!
Hoje realizaria seu maior sonho:
Enviar uma mensagem a todos os seres humanos da Terra.
Todas as pessoas do mundo haviam se reunido para ouvir sua mensagem
Em praças, bares, cinemas, shoppings, casas…
Todos aguardando aquela mensagem importante de coração aberto.
Não podia errar, essa oportunidade não volta jamais.
Coisa importante, mensagem importante de paz e amor.
Respirou fundo, colocou o nariz de palhaço para ter coragem e apertou o botão do microfone:
O grito veio de seus pés, talvez tenha vindo até de outras vidas.
Aí vem:


“EU QUERO QUE VOCÊS TOMEM NO CU CARALHO!!!!!!!!!!!!!!”


Era o suficiente.
Tem dias que a pessoa acorda assim.
Mensagem de paz a que, a traiu, silenciou e amou.
Uma risada na cara de quem fala que mulher não pode falar palavrão.
Assim mesmo: ácido, sórdido, depravado, TRANSGRESSOR!
Gritou com todas as suas forças, com as forças de todas as suas vidas passadas e que estão por vir
Gritou a seus amados, desafetos, conhecidos e desconhecidos
(des)Governantes e (des)governados,
Foi uma boa mensagem, daquelas que dizem pouco mas falam muito, cheia de significado.
Lá fora, era um belo dia, que pedia por uma mensagem igualmente bela.
Tem dia que mandar o mundo ir tomar no cu é lindo. Um ato de amor.
Naquele momento, gritou tanto que sua voz se exauriu
E nunca mais disse uma palavra sequer no resto de toda a sua vida.
Não havia mais o que dizer.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Distanciamento Social #1


Decidiu contar o passar do tempo no distanciamento social por noites.
Começou a contar os dias pelo passar das noites.
O tipo de coisa que sempre faz rir, um joguete com palavras.
E precisava de riso nessa noite.
Precisava deixar tantas coisas que amava de lado
Em prol do bem maior, POR TEMPO INDETERMINADO!
Não saber é o que permite a ansiedade voltar
Não saber é o que mata aos pouquinhos,
Que faz com que esse monstro gosmento da ansiedade mais uma vez
Se instale no peito até que tantas partes de si fiquem tão enferrujadas
MAS TÃO ENFERRUJADAS...!
Que se deterioram até cair de nós.
Seu mundo cheio de deliciosas incertezas sabor doce de leite foi abalado,
Não saber dói nessa noite.
Se despede de sua vida, ainda que temporariamente.
Taí, uma despedida que dói,
Ser obrigada a dizer “O mundo não é mais minha casa por enquanto”
E reduzir uma liberdade à sua casa.
O que não seria um problema normalmente se ainda pudesse escolher ficar ou sair.
Não ter escolha é amargo.

Tomou um chá de kumbayá, nada de mais: camomila, amora, erva doce e hortelã.
Refresca e acalma.

Foi para o quarto, acendeu uma vela depois de rezar por proteção
Proteção a si e aos seus,
Deitou e esperou.
Achou que o kumbayá estava forte demais.
Logo sentiu uma leveza tão forte, quase como uma embriaguez,
Que loucura é essa, de onde algo leve pode ser também forte?
Mal notou que seu corpo se mexia,
Levantou da cama, chamou suas dores para dançar.
Elas não estão indo a lugar algum, então que ao menos dancem conosco!

“A vida é isso, né.”, havia dito mais cedo na terapia “Não é viver sem dor, porque isso não existe, mas harmonizar o viver com a felicidade e a dor, justamente porque tudo passa e a vida acontece, eu querendo ou não. Apesar do que tenho ou não. E uma hora essas dores de agora já não vai doer mais e eu seguirei vivendo. É isso o que eu faço.”, gostaria de ter falado mais mas o tempo da sessão já tinha acabado. Talvez retome esse assunto eventualmente. Quando puder.

E sob a luz do fogo, seu corpo se movimentou
Ao som de “Miss You”, dos Stones.
Essa memória gostosa também vai passar, tudo passa.
Foi uma noite bem dormida.
Nessa noite os pesadelos não vieram.
É a primeira noite de sabe-se lá quantas.

segunda-feira, 9 de março de 2020

Quando nascem as rosas

Nasci em meio à dor.

Quase chorando, como um recém nascido saindo do ventre de sua mãe.
Mas não fui expelida, brotei.
De uma semente, criei raízes, um talo e folhas. E pétalas. Vermelhas.
Sou uma flor. Uma rosa vermelha.
Nasci com a dor de um corte.
Nasci quando devia ter morrido.
A dor da vida, né.
Consciência.
Fui colocada com tantas outras, de tantos tamanhos, formatos e cores diferentes dos meus na parte de trás do caminhão.
Fecha porta. Sombras.
Não vejo o Sol.
Não o vi por muito tempo desde que nasci, mas minha vida foi mais feliz por tê-lo visto.
Balançamos levemente, conforme o movimento do carro.
Não sei medir o tempo.
Para uma rosa, o tempo passa diferente.
Vivo minha vida inteira em uma semana, é o suficiente.
Abre porta, o Sol. Ah, o Sol! Que delícia!
Olho um pouco para cima, sentindo o calor do Sol e sou levada para as sombras mais uma vez.
Sou colocada numa camisa apertada e me jogam num depósito frio e sem luz para aguardar.
Lá, espero. Não há o que fazer além disso.
As rosas são pacientes.
Tem que esperar até que alguém goste de mim e me leve.
Que coisa, né.
Esperar pela conexão certeira. Vai acontecer um dia, eu sei que vai. Só espero que aconteça logo, estou ávida por este encontro.
Preciso que alguém me leve e, ao ver minhas vizinhas sendo levadas, a ansiedade vai tomando conta de mim.
Me sinto inútil.
E aguardo.
E me sinto incapaz.
E espero.
E caio em desespero.
Só quero me livrar dessa camisa.
Me aperto na ideia de ser grande demais para essas amarras.
Passo frio nas sombras e me deleito aos poucos momentos de Sol.
Descobri que gosto da mistura do calor do Sol com o frio de onde estou.
Não gosto das sombras, mas me acostumei aos raros momentos de luz.
Espiralo nos ciclos da vida, me afogo, afundo e caio.
Precisei aprender a cair.
Foi difícil, entre brigas de ego e dores de autodepreciação,
Ninguém me escolhe! Qual o meu problema?
Esperneio na camisa de força.
Até que enfim, uma mão me pega,
FUI ESCOLHIDA! Comemoro.
Me despeço das minhas desprezíveis vizinhas, vomito algumas palavras em xingamento.
Não havia necessidade mas eu fiz porque não aguentava mais.
Estava sufocada com tantas invadindo meu espaço.
As palavras que não dizemos tem que ir pra algum canto, né.
Ou então ficam à espreita, como um predador pra dar o bote. Só... Esperando o momento certo.
A mão me tira de minha prisão, depois, me despe, tirando de mim aquela camisa apertada e na qual eu já há muito não cabia.
Me espreguiço, alongando minhas pétalas.
Diante da liberdade, desabrocho.
Sou paparicada e me deixam bonita.
Me colocam com duas outras parecidas comigo em um buquê.
Estou feliz.
Sou feliz.
Agora tenho meu propósito.
Sou agora o que sempre sonhei ser: boa e bonita o suficiente para ser exposta como um bibelô.
É para isso que flores servem, né? Demonstrar afeto, um pedido de desculpas, uma despedida...
Dizem que o ato de enviar flores vem da Grécia Antiga e eu não duvido. Os caras criaram tudo!
Sou recebida por um belo sorriso e fico satisfeita em saber que meu propósito inclui fazer outros felizes em meu caminho.
Sou colocada num vaso com água.
Água é bom. É refrescante.
Passo minhas horas feliz por ter encontrado meu propósito igual a tantas outras antes de mim.
Ao longo desse caminho de satisfação, vivo perdendo partes de mim ao longo dos dias, murchando até o Destino Final, porém perfeitamente satisfeita com minha vida tão meio tanto faz, tão meio medíocre.
Invejo aquelas cujos destinos foram diferentes dos meu, mas digo a todos e, principalmente, a mim mesma, que eu mereço estar onde estou. Admitir que um lampejo de inveja passou por mim é como perder um jogo. Não sei admitir quando erro, muito menos consigo admitir que minha autoestima não é lá essas coisas. É uma humilhação pela qual não irei passar! Me recuso!
Rio desvairadamente!
E perco partes de mim.
Murcho.
Até não haver mais nada.
Nem Sol,
Nem luz,
Nem vida.
Nasci em dor e morro na paz de ser murcha e incompleta.
A vida de uma rosa tem sabor de maçã.

quarta-feira, 4 de março de 2020

Todas as queimadas me são importantes.






Às chamas da vela amarela dedicada aos meus ancestrais e guardiões,
Queimo as palavras da última lembrança que eu tinha daquele que não merece ser lembrado.
Palavras essas que não passaram de uma mentira, das quais nem me lembro mais, assim como já não lembro mais de seu rosto,
Um esquema arquitetado com qual objetivo nunca saberei.
E nem quero.
O que quero é que os pesadelos parem.
Que a repulsa passe.
Que eu não sinta a bile na minha boca só de imaginá-lo mais uma vez na minha frente.
Entreguei ao fogo porque ele sabe o que fazer com isso melhor que eu.
Transmuta, liberta.
A mão quase queimou, mas não passou de um beijo do meu protetor.
Quentinho. Gostoso. Acolhedor.



As pessoas mentem, mas o fogo, nunca.
Confie apenas na voz do fogo.
Pena que foi rápido demais.
Eu gostaria que tivesse durado mais tempo,
Que eu pudesse observar melhor.
Mas foi tão rápido quanto tudo aconteceu,


No tempo que tinha que acontecer.
Queimou bonito, o fogo.
A vida é feita de despedidas,
Precisamos abrir espaço pro novo.
O peso que saiu de minhas costas...!
Ah, como nos apegamos às demonstrações de afeto que nos foram feitas,
Ainda que mentirosas...!
Muito obrigada, sinto muito e boa sorte.
Nada nem ninguém que não me quer bem conseguirá chegar perto de mim.
Nada nem ninguém irá me colocar para baixo.
Que queime tudo o que não me cabe,
Que o fogo leve tudo o que não me pertence.
O quarto agora cheia a queimado.
Conforto.
Que cinzas busquem brasas.



domingo, 16 de fevereiro de 2020

Risoto de Camarão


O camarão já estava pronto e reservado num prato.
“Eu fico estressada quando percebo que tô falando muito de amor.”, ela diz, cortando a cebola. Está fazendo um risoto. Não aguenta mais fazer risoto. Por que as pessoas insistem em pedir para que ela cozinhe esse prato? Não que seu risoto seja ruim, ou que fazê-lo também o seja, só é algo que já cozinhou tanto que não há mais desafio, sabe? E sem desafio, Pistolinha não vive. Fica logo entediada. E há muito cozinhar esse prato já havia se tornado algo mecânico.

“Eu fico estressada porque não fui ensinada a estar vulnerável e confortável com isso, me sinto meio fraca.”, dá uma mexida no caldo: dois litros de água, uma colherzinha de açafrão e caldo de camarão. Volta as mãos para ficar a cebola, bem picadinha, para ninguém reclamar. Em dias em que se sente inspirada a cozinhar, é sua parte preferida. Nunca chora. Tem gente que acha que é um superpoder. Na verdade ela só molha a faca antes de cortar cebola. É só um truque.

“Mas esses dias eu tava aqui pensando sobre aquele término horrível de uns anos atrás, tu lembra?”, ela dá uma olhadela para trás, para se certificar de que está sendo ouvida. “Isso, do celibato que deveria durar só um ano mas acabou durando dois e meio… Eu tava relembrando essa história porque me deparei com umas coisas que talvez eu até já soubesse mas não tinha percebido que sabia… Sabe como é isso, né?”, parou para jogar metade da cebola que havia sido picada da tábua para a panela.

Foram sete lições sobre o amor (sete é um número amigo dela, se quiser testar, chegue de surpresa e pergunte a ela a tabuada do sete), todas em forma de “não”. “Talvez tenha sido quando eu lembrei que amar também é dizer ‘não’.”
1. Não se pode ajudar quem não quer ajuda;
2. Não queira que alguém fique se esse alguém não quer ficar;
3. Não deixe ninguém projetar seus respectivos problemas em você;
4. Não se salva ninguém, você pode segurar a mão da pessoa para lhe passar segurança e tornar o caminho menos árduo;
5. Não faça algo se seu coração não pedir;
6. Não aceite ser tratada mal, principalmente depois de uma demonstração de afeto, fuja se preciso for;
7. Não esqueça que cada um tem seus limites e suas lutas.
Sete lições que estão gravadas em seu coração, quase tatuadas, como se fossem mandamentos.

“Mas acho que a coisa mais importante daquilo tudo foi que eu decidi que ia me amar tanto que eu não ia precisar do amor de mais ninguém.”, sobe o cheirinho delicioso de cebola refogada. Tem que mexer até dourar. “Agora pronto! Tu vem na minha casa, me pede pra te alimentar e ainda vem me chamar de leviana? É de fudê um negócio desse!”, adiciona o arroz à cebola refogada e mexe. Depois bem misturadinho, adiciona meio copo de vinho branco. É uma delícia o som do vinho tocando a panela quente. “Venha cagar regra na minha casa não, visse! Você sabe que aqui, se você pede comida, a história vem necessariamente junto, então fique na sua e escute!”.

Depois ficou mais leve. Quando fez as pazes com os “nãos” que havia recebido e que viria a dar. Dizer um “não” era um tantinho mais difícil do que receber um, embora não fosse o que aparentava. Mas com Pistolinha, é sempre assim: nem tudo é o que parece ser e ela apenas ri das certezas que querem lhe enfiar goela abaixo. Abraçou suas rejeições, o desconhecido e o amanhã. “Venha o que tiver que vir.”, é o que costuma dizer. É o seu rezo de virada de ano. Abraçou as parcelas de amor que querem dar a ela, não por achar que merece pouco, mas por entender que cada um tem suas limitações, assim como ela tem as dela. “E é amor, deveria ser leve, sem cobranças, sem dor… Se dói, não é amor para mim. Aceito o que quiserem me dar, mas o filtro mínimo é esse. Não me machucar, nem ser tratada mal. O amor pra mim tem que ser gentil também. Talvez a gentileza tenha criado o amor, ou o contrário.”, mexe o arroz usando movimentos leves no pulso, enquanto a comida não engrossa. Mexer é importante, para liberar amido e deixar o arroz cremoso. É divertido ver a mistura heterogênea do arroz branco com o caldo alaranjado. À medida em que o caldo for secando, tem que adicionar mais ao arroz. “Ou você acha que esse caldo fervendo aí do lado é só pra enfeitar?”, ri.

Nunca cozinha sem música. Antes a gente tinha que torcer pra que nosso artista preferido tocasse na rádio e estivéssemos ouvindo… Hoje tem o Spotify. A tecnologia é uma coisa doida, né? A bardo de cabelo roxo e orelhas pontudas canta, conectada pela caixinha azul da JBL. Azul para Pistolinha é a cor da palavra amor, mas ela acredita que seu amor é como um planeta pegando fogo. A superfície deste planeta parece vidro craquelado, devido ao calor, e a luz do fogo é roxa. A cor preferida dela. “O amor que você sente é o mesmo que o amor do outro.”, Potyguara canta. Pistolinha sempre fica em silêncio para ouvir isso. “Mas eu acho mesmo é que ser humano é um bicho estranho que não sabe amar. Ensinam desde cedo que pra amar tem que sofrer. Tá em uma ruma de poesia, né. E se os poetas dizem…”, o arroz está engrossando e é preciso mais força para mexê-lo. Coloca o fogão em fogo médio.

É sempre preciso mais força. “Quando eu decidi me amar acima de tudo, sem precisar do amor e validação de mais ninguém, minha vida mudou porque hoje eu recebo tudo de coração aberto. Entendo melhor que me dão o que podem me dar. E como não há um espaço incompleto em mim, eu não cobro demais, nem me alimento de migalhas. Eu não peço demais, mas o que eu recebo é sempre mais. É sempre uma soma. Então foi o maior presente que eu já dei a mim mesma. Não vou deixar de viver nada, muito pelo contrário… Só que eu agora sou livre. Eu sou como uma história. Uma criatura selvagem, sei lá… Tente enjaular uma criatura selvagem ou a força da natureza, pra tu ver...”, ri. O risotto está quase pronto. Há quem discorde dela. Há quem prefira o arroz mais mole. Há quem a ache uma maluca que mente para si mesma, mas se ela ao menos se importasse… Pistolinha vai viver a vida dela como ela achar que deve e ninguém pode tomar isso dela.

Termina de mexer o arroz, al dente. Desliga o fogo.
Adiciona o parmesão e um pouquinho de provolone “Para dar aquele gostinho de defumado”.
Mexe.
Mistura o camarão.
Mexe mais.
Vê se tá bom de sal.
O sal é sempre o último.
Uma pitada.
PERFEITO!
Espera três minutos para descansar.
O risoto, não ela.
Serve em prato fundo, afinal o “servir” também faz parte do cozinhar.
Com queijo ralado em cima.
Uma pitadinha de orégano, pela estética (pelo sabor também).
Talvez devesse ter colocado só um tantinho de nada de manjericão.
Agora é tarde.
Outra regra entalhada em seu coração: nada de ketchup.
Senta e observa a reação.
É claro que estava delicioso.
É porque foi feito com amor.”, sorri e levanta para fazer seu prato.
Só gosta de comer depois de ver os outros dando a primeira garfada.
Minha saúde vale mais que um beijo.”, Potyguara canta.
E vale mesmo.
Foi gostoso?
Ficasse com fome?
(de amor ou de comida gostosa?)
(oxe, e em certo ponto os dois não acabam sendo a mesma coisa?)

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Sem data para ficar


“Eu costumava achar que...”, pausa a fala para lamber a seda. “Eu achava que era amaldiçoada, sabe?”, falava calma enquanto batia a ponta do cigarro na mesa, “É pra espalhar e deixar mais equilibrado.”, estava mais calma desde que deixou o cigarro. O kumbayá era bom pra esquecer a dependência, e pra ansiedade. Dormia melhor agora. Gosta de ter o cigarro de kumbayá queimando em sua mão. É estético.

Costuma conversar sobre a vida num tom casual, nem nem tirar os olhos do que está fazendo.
“Sei lá, parecia algo de outras vidas. Todo mundo por quem eu já me apaixonei foi embora. Ir embora, que eu digo, é ir para outro lugar, e não acabar comigo e a gente nunca mais se ver.”, diz colocando o cigarro na boca. A chama do isqueiro acende seu rosto. O cheiro de camomila queimada inunda o lugar.

“Não lembro de uma pessoa que tenha ficado.”, não lembra porque não existe. Nunca amou ninguém que fosse ficar. Parecia que quando dizia “Eu te amo”, era como estar dando uma passagem só de ida de presente. Gostava de rir disso, dizendo que, se fosse personagem de uma comédia romântica, o clímax do filme seria que um motorista não a viu gritando na rua de braços abertos e olhando para o céu “EU SOU O QUÊ? A PORRA DE UM AEROPORTO, UMA RODOVIÁRIA DO AMOR, POR CERTO?” e BAM! Atropelada. Acorda no hospital. Só que ao olhar o quarto, não tinha flores. Nem um par romântico preocupado com o estado de saúde dela. Porque, bem… Não havia par romântico. Ele foi embora.

“E tá tudo bem ele ir, é o sonho dele.” e não teria coragem de pedir para dicar. Seria egoísta e injusto. Ela mesma não ficaria. “Mas o que me faz acreditar na maldição é que TODAS as pessoas que eu amei, foram assim. TODAS! Parece que todo amor que me vem tem data de validade. E eu só queria saber como é não saber.” Queria acordar todo dia na incerteza de que aquele é o último. Queria dizer que ama sem saber quando vai ser a última vez que vai dizer isso. Só uma vez gostaria de provar o doce sabor da ignorância.

“Eu às vezes só queria alguém que não sabe quando vai embora, que sequer sabe se vai embora! Alguém que não precise se apressar para se despedir. Claro que isso tem suas vantagens. A minha bênção dentro da maldição é que eu posso amar loucamente porque eu sei que vou ser deixada. Posso ser imprudente e exagerada e está tudo bem. Não preciso ter medo. Mas não consigo evitar, fico me perguntando como seria fazer tudo isso só por fazer e não porque tenho uma data limite. Tem umas magias que só passam com amor verdadeiro, né? Foi isso o que os Contos de Fadas nos ensinaram? Só o amor vai salvar o mundo...”, dá uma risada sarcástica. “Eu gostaria de não sentir isso mas eu sinto inveja de quem não sabe o que vem no dia de amanhã.”, tentou de tudo pra se livrar dessa maldição. De banho de mar ao celibato, passando por sessões de terapia TODA.SEXTA.ÀS.CINCO!!!


Até que desistiu de tudo.
Foi assim que percebeu que odiava saber o seu futuro.
Não pensou em mais nada.
Assim mesmo, num final brusco e inesperado.
Aliás, essa história ainda não tem final.
Até o próximo que vier já sabendo quando vai.



- dez, 2019.